Apresentamos esta publicação em meio a uma intensa discussão sobre a atuação dos poderes econômicos no Brasil e seu impacto sobre a nossa democracia. É um debate crucial, que deve aprofundar a análise sobre os efeitos estruturantes da participação política dos atores econômicos na economia e na sociedade, mas que não pode ser abordado levianamente, nem utilizado de forma instrumental na contenda político-eleitoral, como tem sido o caso até agora: é preciso reconhecer a complexidade da interação Estado-empresas.
Na contramão da banalização do debate sobre essa relação, que expõe contradições dos dois lados do espectro político, a proposta desta publicação é, por meio de estudos de caso em diferentes setores, fornecer um panorama da influência que as empresas exercem sobre os processos políticos no Brasil de forma a favorecer seus interesses privados. O que constatamos, após investigar os principais mecanismos dos quais elas se utilizam em diferentes fóruns democráticos, é a existência de um ciclo perverso, que despreza os interesses de diversas parcelas da sociedade brasileira – sobretudo os dos trabalhadores e trabalhadoras do campo e da cidade – e radicaliza ainda mais as nossas já profundas desigualdades sociais.
Trata-se de um quebra-cabeça cujas peças centrais são: o capitalismo extremo, que fornece o marco para um cenário dinâmico no qual atores econômicos – que aqui denominamos genericamente “empresas”, mas que possuem diversas morfologias, e incluem bancos e fundos de investimento – interagem entre si, ou com Estados e organismos internacionais, que não são outra coisa senão as entidades que representam a soberania popular nos regimes democráticos, e, por fim, os ativistas da sociedade civil, que participam nos níveis internacional e doméstico e que também se apresentam de múltiplas formas e com diversas densidades (movimentos sociais, sindicais e políticos, ONGs, redes, comunidades de base, afetados, formações políticas diversas etc.).
Nesse jogo, os atores econômicos tentam “capturar” as instituições de representação política nacionais e supranacionais, ou seja, os Estados e organismos internacionais, de diversas formas, de modo que seus interesses se transformem em decisões públicas (leis e normas, políticas públicas, programas governamentais, licitações, decisões judiciais) que favoreçam primordialmente os interesses das empresas. Resta à sociedade civil a tarefa de denunciar e contra-arrestar essa captura pela via da disputa sobre os rumos do Estado através da mobilização civil, campanhas e outras atividades.
É um jogo desigual, que se traduz em: a) crescente privatização da democracia – ou seja, um cenário no qual, graças a diversas formas de influência, empresários controlam mecanismos centrais da dinâmica democrática (eleições, trabalho parlamentar, programas, obras, poder judiciário etc.) – que, por sua vez, resulta em b) políticas públicas, leis e acordos internacionais que favorecem os interesses econômicos das grandes corporações transnacionais e redundam em c) maior concentração econômica, que produz d) atores econômicos cada vez mais poderosos em relação às outras esferas da sociedade, cuja existência resulta em e) sociedades mais pobres, tanto em termos econômicos quanto de soberania. E são essas sociedades de extremos cada vez mais distantes, nas quais o interesse geral não tem expressão no sistema de representação política, que têm sido a marca central do capitalismo global contemporâneo que chamamos de capitalismo extremo.
Ou seja, o que constatamos é a vigência da contradição simples, mas tenaz e mutante, que jaz no cerne do capitalismo: a da dominância de grandes atores econômicos na arena política de democracias capitalistas de forma a explorar os demais setores menos favorecidos da sociedade. E este acúmulo respalda a necessidade de construir e sistematizar um debate público sobre a privatização da democracia brasileira no século 21.
Passados mais de 30 anos do início da chamada “globalização”, o modelo de mundialização da economia via abertura e desregulamentação global dos mercados em termos de comércio e investimentos produziu um novo padrão de concentração e internacionalização da economia. Ao mesmo tempo, operou uma feroz desorganização das relações no mundo do trabalho e configurou novas relações de consumo, padrões culturais e de relacionamento com a natureza e com o nosso habitat rural e urbano. As crises condensadas no crack de 2008 desnudaram, por um lado, o caráter mais selvagem e irracional dessa globalização e, por outro, a resiliência do “mercado” e, sobretudo, a promiscuidade entre os interesses privados, – as empresas – e as agências públicas – os governos e as entidades governamentais internacionais.
O saldo geral desse processo tem sido uma economia transnacional fora do controle dos governos nacionais, nas mãos de um número cada vez menor de grupos econômicos e uma distribuição de riqueza recordista em termos de desigualdade. A concentração e a desigualdade são as duas características centrais do que chamamos de capitalismo extremo: a extrema concentração de riquezas e a tendência à extrema concentração da propriedade das empresas.
O artigo de Ladislau Dowbor nesta publicação cita um estudo do Instituto Federal Suíço de Pesquisa Tecnológica que selecionou os 43 mil grupos empresariais mais importantes do mundo e analisou como se dá, por meio de participações cruzadas e fusões interempresariais, o controle do conjunto. A pesquisa “chegou a uma cifra impressionante que mudou a visão que temos do sistema econômico mundial: 737 grupos apenas controlam 80% do mundo corporativo, sendo que, destes, um núcleo de 147 controla 40%”. Destes 147, 75% são essencialmente grupos financeiros. “Um grupo tão limitado não precisa fazer conspirações misteriosas, são pessoas que se conhecem no campo de golfe ou no Open de Tênis da Austrália, se ajeitam confortavelmente entre si”, afirma Dowbor. “Falar em mecanismos de mercado neste clube restrito não faz muito sentido.” 1
No Brasil, é forte a existência de “conglomerados empresariais” que possuem donos com propriedade cruzada em várias empresas. Segundo Lazzarini, são entidades que surgem “devido a dois atributos típicos das redes societárias brasileiras: os consórcios (vários donos associados a um mesmo projeto ou empresa) e as pirâmides de controle (donos com participações em uma empresa intermediária que, por sua vez, agrega posições em diversas outras)”.2 O autor chama a atenção para o vínculo direto ou indireto desses aglomerados com o BNDES ou os fundos de pensão das estatais. Segundo ele, o principal problema é justamente a redução da competição: “se três grupos se juntam em um consórcio, são dois concorrentes a menos em um setor”.3 A cartelização é o passo seguinte.
Uma outra característica desse fenômeno no nosso país tem sido a aceleração das fusões e aquisições. Em uma fusão, duas (ou mais) empresas viram uma, na aquisição, uma (ou mais) empresas compram outra – ou seja, nas duas operações, sempre ocorre a diminuição de ao menos uma entidade.4 No período de 2002 a 2015, a velocidade das fusões e aquisições pulou de uma média de 384 em 2002/2005, para 646 em 2006/2009 e, finalmente, para 793 em 2010/2015.5 Ou seja, dobraram em um período de menos de dez anos. Alguns exemplos desse tipo de operações ocorrem em áreas com muito impacto na vida cotidiana dos cidadãos. Em 2015, a americana United Health, que já comprara a Amil em 2012 por R$ 10 bilhões, comprou o Hospital Samaritano de São Paulo por R$ 1,3 bilhão. Na área da educação, a fusão entre os grupos Kroton e Anhanguera em 2014 criou uma empresa com valor de mercado de mais de R$ 24 bilhões e, no ano seguinte, a Estácio Participações, um dos maiores grupos educativos particulares do país, adquiriu a Faculdade Nossa Cidade pelo valor de R$ 90 milhões. No setor de alimentos, em 2012, o grupo francês Casino assumiu o controle do Grupo Pão de Açúcar, e, entre outros exemplos, em 2015, a Hortifruti comprou a sua concorrente em São Paulo, a Natural da Terra. No setor de turismo, também no ano passado, a CVC comprou a Submarino viagens por R$ 80 milhões. Isso quer dizer que menos atores possuem cada vez maiores participações no “mercado” (market share), tornando-se, por isso, mais poderosos na determinação dos preços, da qualidade dos produtos e dos serviços, além das condições impostas aos seus usuários, consumidores e fornecedores.
A Oxfam liberou em janeiro deste ano um informe baseado no relatório do Credit Suisse que afirma que “a distância entre ricos e pobres está chegando a novos extremos”, sendo que “o 1% mais rico da população mundial acumula mais riquezas atualmente que todo o resto do mundo junto”. Para a organização, “essa é apenas a evidência mais recente de que vivemos atualmente em um mundo caracterizado por níveis de desigualdade não registrados há mais de um século”.
Segundo a Oxfam, “a crescente desigualdade econômica é ruim para todos nós – ela mina o crescimento e a coesão social. No entanto, as consequências para as pessoas mais afetadas pela pobreza no mundo são particularmente graves”.6 Segundo o relatório:
– Em 2015, apenas 62 indivíduos detinham a mesma riqueza que 3,6 bilhões de pessoas – a metade mais afetada pela pobreza da humanidade. Esse número representa uma queda em relação aos 388 indivíduos que se enquadravam nessa categoria há bem pouco tempo, em 2010.
– A riqueza das 62 pessoas mais ricas do mundo aumentou em 45% – ou mais de meio trilhão de dólares (US$ 542 bilhões) – nos cinco anos posteriores a 2010, saltando para US$ 1,76 trilhão.
– A riqueza da metade mais pobre caiu em pouco mais de US$ 1 trilhão no mesmo período – uma queda de 38%.
– Desde a virada do século, a metade da população mundial mais afetada pela pobreza ficou com apenas 1% do aumento total da riqueza global, enquanto metade desse aumento beneficiou o 1% mais rico da população.
– O rendimento anual médio dos 10% mais pobres da população mundial aumentou menos de US$ 3 em quase um quarto de século. Sua renda diária aumentou menos de um centavo a cada ano.
Se a situação mundial é preocupante, a América Latina e o Brasil permanecem em situação particularmente crítica em termos de distribuição de riquezas. Nosso país é um dos mais desiguais do mundo: 0,5% da população economicamente ativa concentra 43% da riqueza7 e os 8% mais ricos possuem 87% da riqueza8 Apesar de políticas redistributivas nos últimos anos terem contribuído para aumentar a participação dos mais pobres na riqueza nacional, o processo de acumulação do capital tem crescido velozmente – enquanto o PIB cresceu 19% entre 2007 e 2013, por exemplo, a renda dos “super-ricos” (0,3% dos declarantes) subiu 39% – e, segundo alguns autores, chega a neutralizar a recente melhoria na distribuição de renda9.
O capitalismo extremo tem custos políticos, sociais, econômicos, ambientais e culturais. Tem impacto na saúde da população, cujo acesso a medicamentos é limitado pelo preço proibitivo que o sistema de patentes assegura às empresas farmacêuticas. Afeta também a educação, porque, com um sistema público insuficiente, as pessoas ficam a mercê das ofertas “particulares”, que são de pior qualidade no caso das universidades ou caras demais no caso do ensino primário e secundário, quando o direito à educação deveria ser garantido pelo Estado. Tem custo para o bolso dos consumidores, que arcam com juros exorbitantes só aplicados no Brasil, e para os que procuram uma moradia digna, mas não conseguem ter acesso a ela tanto por causa do alto preço dos aluguéis e imóveis em um mercado de escassez dominado por agentes privados especulativos quanto pela dificuldade em obter crédito.
Esse sistema impõe custos aos pequenos produtores agrícolas, que ficam reféns dos “contratos de serviço” com as grandes processadoras de alimentos, ou a cada dia mais dependentes dos agrotóxicos e das sementes transgênicas vendidas com exclusividade por algumas transnacionais. Prejudica a saúde de quem se alimenta desses produtos produzidos com crescentes doses de veneno. Tem impacto sobre todos os seres que vivem neste planeta, ao impor obstáculos ou deturpar as políticas para frear o aquecimento global, e efeitos diretos nas populações cujo ambiente de vida e forma de sustento são alteradas pela construção de barragens e obras como Belo Monte. Afeta os jovens, em particular negros e negras, que morrem assassinados por causa dos lobbies da “bala”, que, por um lado, promovem a venda de armas e a cultura da violência e, por outro, a ideia de que o Estado deve se equipar cada vez mais para combater a violência e a criminalidade, o que resulta em nosso altíssimo índice de letalidade policial e na cada vez mais intensa repressão às manifestações sociais com novas armas menos letais. Ao acirrar a concentração da capacidade de transmitir informação e produzir cultura, também impacta toda a população, que fica refém do olhar interessado dessas poucas fontes.
São muitos os afetados – homens e mulheres, jovens e velhos, negros, brancos, índios, urbanos, rurais, migrantes. Por limitações de tempo e de recursos, esta publicação só pôde tratar de alguns setores. Mas este catálogo não teria sentido não fosse para chamar a atenção para os impactados, sobretudo daqueles com menos recursos para se defender.
O papel dos chamados “grupos de interesse”, incluindo empresas e associações empresariais, no desenho e implementação de políticas públicas tem interessado a cientistas sociais há pelo menos quatro décadas. Marxistas chamaram atenção para o poder estrutural das elites econômicas, que advém tanto de seu domínio ideológico – ou seja, seu poder de neutralizar ideias contrárias a seus interesses10 – quanto de seu poder econômico: por terem a capacidade de aumentar ou reduzir seu investimento, criar ou reduzir empregos e determinar outros fatores cruciais para o desempenho das economias nacionais, empresários não precisam fazer nada para ter seus interesses defendidos pelos governantes, sempre temorosos dos efeitos eleitorais da retração econômica13 apontavam as empresas como grupos particularmente aptos a exercer pressão política sobre os governos, principalmente por terem mais recursos para tanto14.
A chamada globalização econômica adicionou novas dimensões à questão da captura ao reduzir o espaço político (policy space) de que dispõem os países para legislar.15 A crescente mobilidade do capital e consequente competição por investimentos, por exemplo, aumentou o poder estrutural do capital privado ao fazer com que grupos de investidores ganhassem o que Susan Strange16 chamou de “autoridade para recompensar ou punir” políticas econômicas de países por sua simples capacidade de mover fábricas ou recursos de um país para outro. Assim, quando normas são percebidas por governantes ou legisladores – ou apontadas por governos estrangeiros – como prejudiciais a esse “ambiente favorável” ou à competitividade do país nos mercados internacionais, elas podem ser abandonadas ou amenizadas, mesmo que tenham sido implementadas em nome do bem público, sendo que o poder estrutural das empresas é tão maior quanto for a dependência desses governos de investimentos estrangeiros ou da exportação de poucas variedades de matérias-primas ou commodities.17
Exemplos do poder estrutural das empresas não faltam no Brasil. A política fiscal seja talvez o cenário no qual esse poder se mostre mais claramente. Apesar de o Brasil ser um dos únicos países do mundo a não taxar lucros e dividendos de empresas no imposto de renda de pessoa física, o que priva o país de uma receita extra de cerca de R$ 43 bilhões por ano,18 por exemplo, a elite econômica ameaça retirar o apoio ao governo a cada tentativa de ajustar a política fiscal no sentido de repartir a conta com o setor mais rico, e afirma que a única solução para equilibrar as contas da nação é cortar gastos sociais. As desonerações fiscais concedidas pelo governo a certos setores, sem nenhuma condição social em troca, já custaram ao país mais de R$ 260 bilhões, sendo R$ 68 bilhões só entre 2011 e 2014.19
Captura política – As empresas não têm poder estrutural suficiente para determinar as ações de todos os governos em todos os setores. A tentativa de atrair votos e/ou a pressão de outros grupos de interesse (sindicatos, associações ambientalistas e outras) contribuem para que políticos decidam regular certas atividades empresariais. Os empresários afetados passam, então, a se engajar ativamente para influenciar o desenho e a implementação de políticas – seja por meio do lobby, do financiamento de campanhas políticas, do apoio a think tanks, cientistas ou institutos de pesquisa que contribuem para a definição de agendas e issues, da participação institucional em comissões e agências reguladoras, ou outros.20
Chamamos de captura política a influência assimétrica, ou desproporcional em relação a outros atores sociais, das empresas privadas ou entidades representativas do setor sobre os processos e instâncias de tomada de decisão dos poderes públicos, de forma a beneficiar seus próprios interesses, muitas vezes em detrimento do interesse público.
Na captura política, as decisões sobre a elaboração e modificação das leis (de competência do Legislativo), sobre a interpretação e aplicação das leis (Judiciário) e sobre o desenho e execução das políticas públicas (Executivo) são influenciadas para que seja favorecido o lucro de atores econômicos específicos.
O enfraquecimento ou a diluição de regulações que controlam a conduta de determinado setor econômico, o conhecimento antecipado de planos ou programas governamentais, a participação em conselhos ou comissões encarregadas de desenhar ou implementar políticas públicas, o financiamento de campanhas políticas, o lobby e a promoção de bancadas parlamentares no Congresso, bem como a contratação de políticos e funcionários públicos com contatos no governo são alguns dos mecanismos utilizados por empresas para influenciar as decisões políticas.
No Brasil, a captura política ocorre em cada um dos setores-chave da economia: grandes empresas de biotecnologia pressionam pela autorização da comercialização de produtos pouco seguros; farmacêuticas influenciam o desenho de leis de patentes para lucrar o máximo possível com medicamentos essenciais; donos de emissoras de rádio e TV elegem-se deputados para aprovar leis que os favoreçam; empreiteiras financiam campanhas políticas para garantir que seus interesses sejam defendidos no Legislativo e no Executivo etc.
Além da captura institucional, as empresas também tentam influenciar decisões políticas por meio do que chamamos de captura “cultural” ou “ideológica”. Esse tipo de captura ocorre quando os atores econômicos, por meio dos meios de comunicação, da publicidade, da produção de conhecimento “científico” e de outros mecanismos, disseminam visões de mundo, valores ou conceitos determinando quais são as formas mais desejáveis de agir, consumir e pensar, ou difundindo a ideia de que essas são as únicas possíveis formas de ação, consumo ou pensamento. Pior ainda é a tentativa de diversos atores econômicos de incutir a ideia de que agir de acordo com seus interesses equivale a agir de acordo com o interesse público. Entre os exemplos notórios de captura ideológica no âmbito global estão aqueles perpetrados pela indústria farmacêutica, que dissemina a ideia de que o desenvolvimento de novos medicamentos só é possível graças ao atual sistema de patentes; e o das empresas de petróleo que financiam cientistas e congressos que afirmam que a mudança climática não existe.
Além disso, grandes empresas têm a capacidade de fortalecer ideologias favoráveis aos seus interesses colaborando com determinadas classes políticas, seja deslegitimando um governo sob ataque ou apoiando operações que subvertem o jogo democrático, tais como golpes de Estado. Casos históricos de destaque são: o papel da empresa norte-americana ITT no Chile em 1973 (ajudando financeiramente a derrubada de Salvador Allende), ou as relações de apoio mútuo entre empresariado e regime militar no Brasil (1964-1985).
Captura econômica – As empresas privadas também se utilizam de seu poder econômico para se apropriar de uma fatia desproporcional da riqueza social ou dos bens comuns, em um processo que chamamos de captura econômica. A financeirização de praticamente todos os setores da economia, a manutenção de altas taxas de juros e a ameaça por grupos de investidores de retirar investimentos de determinado país caso certas condições econômicas não sejam cumpridas são exemplos das formas pelas quais as empresas se utilizam de seu poder econômico para ampliar ainda mais a concentração de riqueza em suas mãos. A área social não escapa desta lógica: previdência social, saúde, educação, saneamento e mobilidade também se transformaram em objetos da acumulação dos mercados financeiros.
A captura no âmbito internacional – A captura corporativa evidentemente não ocorre apenas no nível nacional. Tanto pelo caráter transnacional das maiores empresas operantes hoje quanto pela ausência de mecanismos regulatórios globais eficazes para lidar com elas, a esfera internacional é terreno fértil para todos os tipos de captura.
Para Gleckman, o modelo de governança global atual está falido: suas instituições estão falidas, já que são “remanescentes do ‘estado-centrismo’” e “está demonstrado que não são capazes de governar a globalização contemporânea, conter a mudança climática ou dar conta das falências sociais sistêmicas”.21 Por um lado, as empresas foram adquirindo nos anos da globalização um crescente peso político devido aos ganhos de escala de seus mercados e de sua produção, que impulsionaram a “necessidade” das fusões e aquisições, resultando em maior concentração e volume das empresas na economia global.
Por outro lado, o sistema se ressente da ausência de uma institucionalização da participação que defina regras para criar condições de concorrência equitativa entre sociedade civil e empresariado nos processos políticos globais.22 No Brasil, por exemplo, ainda não foi possível criar espaços institucionalizados para a democratização das decisões da política externa, reivindicação de muitos atores sociais. Na Europa, o Corporate Europe Observatory (CEO), uma organização sediada em Bruxelas que monitora os lobbies empresariais sobre as instituições da União Europeia, fez um levantamento sobre a influência das empresas nas negociações da Associação Transatlântica sobre Comércio e Investimentos – mais conhecida pela sua sigla em inglês, TTIP. O CEO constatou que, para elaborar a proposta da UE, foram realizadas 528 reuniões, das quais 88% foram com lobistas empresariais e só 9% com grupos de interesse público. A cada dez reuniões com os empregadores, por exemplo, houve uma com os trabalhadores. A maioria das empresas ou associações empresariais eram europeias, mas foram ouvidos também lobistas dos Estados Unidos. Um dos temas prioritários para esse setor foi o da “cooperação regulatória”, uma série de ferramentas para as empresas pressionarem em Bruxelas, Washington ou outras capitais contra leis ou normas que pudessem “ferir interesses empresariais”, geralmente contra outros grupos sociais23 – ou seja, garantias para proteger as eventuais vantagens adquiridas no TTIP de futuras “ingerências” políticas por parte dos Estados.
Outro mecanismo de captura utilizado pelos atores econômicos na esfera internacional é a chamada abordagem multissetorial (multistakeholder approach), que advoga a participação igualitária de atores privados e públicos nos processos globais de tomada de decisão. O Fórum Econômico Mundial, por exemplo, levou adiante um amplo processo de consulta e produziu um documento chamado “Iniciativa de Redesenho Global” (Global Redesign Initiative), que se pretende o “manual mais abrangente para um sistema de governança global pós-Estado-nação”, do qual a abordagem multissetorial é parte central. O informe afirma que “a governança multissetorial é uma modalidade parcial de substituição das decisões intergovernamentais”. Essa forma de lidar com a governança que tem sido promovida também em vários níveis dos órgãos da ONU, os quais têm recomendado “institucionalizar a parceira público-privado no nível global”.24
A captura política e a captura econômica por empresas privadas são problemáticas não apenas por contribuírem para que o interesse privado prevaleça sobre o interesse público, ampliando ainda mais a desigualdade econômica e social tanto dentro de um país quanto entre países, mas também porque enfraquecem a própria democracia. Em primeiro lugar, gera-se um sentimento de “impotência institucional” – ou seja, cidadãos sentem que não há instâncias às quais recorrer (ou, se as há, não sabem quais são) para lidar com os problemas que enfrentam, já que as instâncias existentes presumem Estados mais fortes do que empresas privadas. Além disso, a super-representação de grupos minoritários em fóruns democráticos contribui para a percepção por parte dos cidadãos de que as instituições democráticas não os representam.
Como avançar rumo ao desmantelamento da captura corporativa, das desigualdades que ela gera e da regulamentação dos atores econômicos, em um mundo crescentemente interdependente, mas que opera totalmente fora do controle e da soberania dos povos? Quaisquer possíveis soluções para essa pergunta devem incluir a participação dos principais afetados pela captura, e não fingimos aqui termos receitas para resolver esse problema. Propomos, contudo, que é necessário pulverizar o excesso de poder empresarial que permite o assalto às instituições governamentais e ampliar a mobilização e participação da sociedade para reforçar a capacidade do Estado de resistir a pressões poderosas.
Entre as medidas com potencial para bloquear a tendência ascendente de desigualdade social e concentração da propriedade empresarial em poucas mãos, estão:
– A eliminação dos direitos de propriedade intelectual, que impedem o acesso à saúde de milhões para manter o lucro de poucas farmacêuticas;
– A reversão dos acordos de livre comércio e investimentos, que desobstruem o caminho do lucro das grandes corporações, contra os interesses dos trabalhadores e dos pequenos e médios produtores do campo e da cidade;
– A eliminação dos tribunais gerados por esses mecanismos, que julgam majoritariamente em favor das empresas e contra os Estados e povos;
– A limitação do tamanho das empresas (e de todas as suas variantes em termos de propriedade) para evitar monopólios, cartéis e operações contra usuários e consumidores derivadas de sua posição privilegiada no mercado;
– A retirada dos bens comuns da natureza da esfera de atuação dos setores privados;
– A eliminação de paraísos fiscais;
– O fim dos acordos de dupla tributação;
– A implementação de reformas tributárias progressivas que onerem as grandes fortunas e as heranças, mecanismos que só favorecem a concentração e a perpetuação dos que já ricos, continuam ricos.
Definitivamente, é preciso ampliar o controle público da economia, porque, ao contrário do que diz o credo da mão invisível do mercado, é só fortalecendo o público que o bem comum pode ser realizado.
Adicionalmente, como dissemos, no jogo democrático, ampliar os mecanismos de transparência e participação da sociedade nas decisões relativas a políticas públicas é a melhor medida para blindar o “público”, ou seja, o que é de todos, contra a cooptação por parte dos poderes econômicos nacionais ou, pior ainda, estrangeiros. A participação social é chave durante o desenho e a implementação das políticas públicas que aspiram a proteger o interesse público, em oposição aos interesses particulares ou privados das empresas ou setores. Deve, por isso, ser promovida e apoiada de forma adequada pelas instituições públicas. Transparência e acesso à informação são pré-condições para uma participação real da sociedade civil e devem ser garantidas. Os governos devem ser ativos na promoção da participação social e as organizações sociais devem demandá-la de forma ativa.
Algumas medidas que poderiam contribuir para a proteção dos procedimentos democráticos e das instituições públicas da captura são:
– Ampla reforma política, realizada por Assembleia Nacional
– Constituinte específica para este fim;
– Aperfeiçoamento das leis anticorrupção, com penas maiores para ambos os agentes da corrupção;
– Proibição efetiva ao financiamento empresarial de campanhas eleitorais e de partidos;
– Fixação de limites baixos para as contribuições pessoais para os partidos e as campanhas;
– Promoção do financiamento público dos partidos e das campanhas.
Como vimos, a captura corporativa privatiza a democracia no nível nacional por meio da captura política institucional e cultural, e, pela captura econômica, permite que as empresas se apropriem de uma parcela cada vez maior das riquezas da sociedade. A esfera internacional é também uma arena muito pouco sujeita a controles democráticos claros, na qual os Estados, influenciados pelas próprias comunidades de negócios, fracassam na criação de normas para proteger os direitos. De fato, os países caminham em sentido oposto, defendendo acordos de comércio e investimento que aumentam o poder das empresas. Alguns autores chamam esse cenário de “o novo direito corporativo global”25, ou “arquitetura da impunidade”, já que permitem que os atores econômicos operem praticamente sem constrangimentos sociais ou ambientais.
Os vários casos e situações expostas nesta publicação mostram que os efeitos da captura são ruins para a saúde, a educação, o acesso à moradia, o meio ambiente e os direitos humanos em geral. O quadro é ainda pior para as populações pobres dos países pobres, que são as que menos recursos possuem para enfrentar as situações de adversidade. Na maioria dos casos, um maior ativismo público e estatal é necessário. Quem teme o Estado democrático é o mercado, não aqueles que almejam o bem comum. Os povos que almejam o bem comum temem as tiranias dos poucos, ou das máquinas estatais controladas por democracias privatizadas que servem aos interesses de alguns. Renunciar a uma visão do Estado que consagre o público e o bem comum pode significar a eliminação definitiva do comum, mais ainda no contexto das nossas sociedades complexas. Ainda assim, o Estado que consagra o público através da sua radicalização deve ser não um Estado-pai, mas um Estado-parte – um Estado do qual a sociedade seja e se sinta partícipe. Ao mesmo tempo, em vez da privatização do Estado pelos agentes do mercado, a sociedade precisa ter o Estado “incorporado” no bojo de sua luta por mais direitos para todos e todas.
A contradição entre a prevalência do poder econômico e a defesa da democracia e dos direitos para todos/as, mesmo que vigente e persistente nas nossas sociedades, não é de forma alguma intransponível em favor do polo mais despojado da equação. Mesmo antes de atingirmos uma utopia de uma sociedade de iguais, vivendo em paz e harmonia entre si e com a natureza, podem ser identificadas formas intermediárias de existência que fortaleçam o exercício da democracia em sociedades modernas, complexas e globais como as nossas na atualidade. Mas, para isso, precisamos sair da caixa em que o capitalismo extremo nos colocou e nos libertarmos das restrições ideológicas nas quais sua refinada captura cultural nos enreda; sem medo de navegar em rumos alternativos.