1 Olhar o século 21 pelas lentes do século passado não ajuda. Quando pensamos o mundo da economia, pensamos ainda em interesses econômicos e mecanismos de mercado. A política, o poder, os impostos, o setor público representariam outra dimensão. Não é nova a ruptura destas fronteiras, a penetração dos interesses de grupos econômicos privados na esfera pública. O que é novo é a escala, a profundidade e o grau de organização do processo. O que já foram deformações fragmentadas, penetrações pontuais através de lobbies, de corrupção e de “portas-giratórias” entre o setor privado e o setor público se avolumaram e, por osmose, estão se transformando em um poder político articulado no qual o interesse público aflora apenas por momentos e segundo esforços prodigiosos de manifestações populares, de frágeis artigos na mídia alternativa, de um ou outro político independente. O poder corporativo se tornou sistêmico, capturando uma a uma as diversas dimensões de expressão e exercício de poder.
Uma forma é a própria expansão dos tradicionais lobbies. A Google, por exemplo, tem hoje 8 empresas de lobby contratadas apenas na Europa, além de financiamento direto de parlamentares e de membros da Comissão. É provável que tenha de pagar 6 bilhões de euros por ilegalidades cometidas na Europa. Os gastos da Google nesta área já se aproximam dos da Microsoft. A Google mobilizou congressistas americanos para pressionarem a Comissão: “O esforço coordenado por senadores e membros do Congresso, bem como de um comité de congressistas, fez parte de um esforço sofisticado, com muitos milhões de libras em Bruxelas, com que a Google montou a ofensiva para travar as resistências à sua dominação na Europa.” 2
Enquanto os lobbies ainda podem ser apresentados como formas externas de pressão, muito mais importante é o financiamento direto de campanhas políticas, através de partidos ou investindo diretamente nos candidatos. No Brasil a lei promulgada em 1997 autorizou as empresas a financiar candidatos, com impactos desastrosos, em particular no comportamento de parlamentares, que passaram a formar bancadas corporativas. Em 2010 os Estados Unidos seguiram o mesmo caminho, levando a que hoje os americanos comentem que “temos o melhor Congresso que o dinheiro pode comprar”. No Brasil finalmente o STF decretou a ilegalidade da prática, a valer a partir das próximas eleições. Mas em 2015 ainda temos uma bancada ruralista, uma da grande mídia, outra das empreiteiras, uma dos bancos, uma das montadoras, e contam-se nos dedos os representantes do cidadão. O truncamento do Código Florestal e consequente retomada da destruição da Amazônia, o bloqueio da taxação de transações financeiras e tantas outras medidas, ou ausência de medidas, como é o caso da imposição sobre fortunas ou capital improdutivo, resultam desta nova relação de forças que um Congresso literalmente comprado permite.
A captura da área jurídica adquiriu imensa importância, e se dá por várias formas. Foi notória a tentativa dos grandes bancos brasileiros, por meio de financiamentos de diversos tipos, de colocar as atividades financeiras fora do alcance do PROCON e de outras instâncias de defesa do consumidor. Nos Estados Unidos, um juiz de uma comarca americana decide colocar a Argentina na ilegalidade no quadro dos chamados “fundos abutres”, pondo-se claramente a serviço da legalização da especulação financeira internacional, e acima da legislação de outro país.
Uma forma particularmente perniciosa de captura do judiciário se deu através dos acordos ditos “settlements”, pelos quais as corporações pagam uma multa mas não precisam reconhecer a culpa, evitando assim que os administradores sejam criminalmente responsabilizados. Assim os administradores corporativos e financiadores ficam tranquilos em termos de eventuais condenações. Joseph Stiglitz comenta: “Temos notado repetidas vezes que nenhum dos responsáveis encarregados dos grandes bancos que levaram o mundo à borda da ruina foi considerado responsável (accountable) dos seus malfeitos. Como pode ser que ninguém seja responsável? Especialmente quando houve malfeitos da magnitude dos que ocorreram nos anos recentes?” 3
A GSK, por exemplo, um gigante da área farmacêutica, fez um acordo com a justiça americana para compensar fraude generalizada com três tipos de medicamentos pagando 3 bilhões de dólares. A notícia da condenação por fraude que atingiu milhões de pacientes não causou prejuízo significativo à empresa, cujas ações subiram ao se constatar que tinha lucrado com a fraude mais do que o valor da multa. Os aplicadores financeiros consideraram que o seu dinheiro fora bem defendido. Esta desresponsabilização é hoje generalizada, abrindo uma porta paralela de financiamento de governos graças às ilegalidades. Para dar alguns exemplos, o Deutsche Bank está pagando uma multa de 2,6 bilhões de dólares em 2015, o Crédit Suisse está pagando 2,5 bilhões por condenação em 2014 e assim por diante, envolvendo todos os gigantes corporativos. Um exercício de sistematização da criminalidade financeira pode ser encontrado no site Corporate Research Project, que apresenta as condenações e acordos agrupados por empresa.
Hoje as corporações dispõem do seu próprio aparato jurídico, como o International Centre for the Settlement of Investment Disputes (ICSID) e instituições semelhantes em Londres, Paris, Hong Kong e outros. Tipicamente, irão atacar um país por lhes impor regras ambientais ou sociais que julgam desfavoráveis, e processá-lo por lucros que poderiam ter tido. A disputa jurídica constitui uma dimensão essencial dos tratados TTIP (Transatlantic Trade and Investment Partnership) na esfera do Atlântico e TPP (Trans-Pacific Partnership) na esfera do Pacífico, ao amarrar um conjunto de países com regras internacionais em que os Estados nacionais perderão a capacidade de regular questões ambientais, sociais e econômicas, e muito particularmente, as próprias corporações. Pelo contrário, serão as próprias corporações a impor-lhes, e a nós todos, as suas leis. Nas palavras de Luís Parada, um advogado de governos em litígio com grupos mundiais privados, “a questão finalmente é de saber se um investidor estrangeiro pode forçar um governo a mudar as suas leis para agradar ao investidor, em vez de o investidor se adequar às leis que existem no país.” 4
Outro eixo poderoso de captura do espaço político se dá através do controle organizado da informação, construindo uma fábrica de consensos sobre a qual Noam Chomsky nos deu análises preciosas.5 O alcance planetário dos meios de comunicação de massa e a expansão de gigantes corporativos de produção de consensos permitiram que se atrasasse em décadas a compreensão popular do vínculo entre o fumo e o câncer, que se travasse nos Estados Unidos a expansão do sistema público de saúde, que se vendesse ao mundo a guerra pelo controle do petróleo como uma luta para libertar a população iraquiana da ditadura e para proteger o mundo de armas de destruição em massa. A escala das mistificações é impressionante.
Ofensiva semelhante em escala mundial, e em particular nos EUA, foi organizada para vender ao mundo não a ausência da mudança climática – os dados são demasiado fortes – mas a suposição de que “há controvérsias”, adiando ou travando a inevitável mudança da matriz energética. James Hoggan realizou uma pesquisa interessante sobre como funciona esta indústria. A articulação é poderosa, envolvendo instituições conservadoras como o George C. Marshall Institute, o American Enterprise Institute (AEI), o Information Council for Environment (ICE), o Fraser Institute, o Competitive Enterprise Institute (CEI), o Heartland Institute, e evidentemente o American Petroleum Institute (API) e o American Coalition for Clean Coal Electricity (ACCCE), além do Hawthorne Group e tantos outros. As Koch Industries e ExxonMobil são poderosos financiadores. Sempre petróleo, carvão, produtores de carros e de armas, muitos republicanos e a direita religiosa. 6
Campanhas deste gênero são veiculadas por gigantes da mídia. No Brasil, 97% dos domicílios têm televisão, que ocupa 3 a 4 horas do nosso dia, e que está presente nas salas de espera, nos meios de transporte, incessante bombardeio que parte de alguns poucos grupos. No nível mundial, Rupert Murdoch assume tranquilamente ser o responsável pela ascensão e suporte a Margareth Thatcher, financiou um sistema de escutas telefônicas em grande escala na Grã-Bretanha, sustenta um clima de ódio de direita através da Fox, sem receber mais que um tapinha na mão quando se revelam as ilegalidades que pratica. No Brasil, com o controle da nossa visão de mundo por quatro grupos privados – os Marinho, Civita, Frias e Mesquita – o próprio conceito de imprensa livre se torna surrealista, e os impactos na Argentina, no Chile, na Venezuela e outros países são impressionantes em termos de promoção das visões mais retrógradas e de geração de clima de ódio social.
A vinculação da dimensão midiática do poder com o sistema corporativo mundial é em grande parte indireta, mas muito importante. As campanhas de publicidade veiculadas empurram incessantemente comportamentos e atitudes, centradas no consumismo obsessivo dos produtos das grandes corporações. Isto amarra a mídia de duas formas: primeiro, porque pode dar más notícias sobre o governo, mas nunca sobre as empresas, mesmo quando entopem os alimentos de agrotóxicos, deturpam a função dos medicamentos ou nos vendem produtos associados com a destruição da floresta amazônica. Segundo, como a publicidade é remunerada em função de pontos de audiência, a apresentação de um mundo cor-de-rosa de um lado, e de crimes e perseguições policiais de outro, tudo para atrair a atenção pontual e fragmentada, torna-se essencial, criando uma população desinformada ou assustada, mas sobretudo obcecada com o consumo, o que remunera as corporações que financiam estes programas. O círculo se fecha, e o resultado é uma sociedade desinformada e consumista. A publicidade, o tipo de programas e de informação, o consumismo e o interesse das corporações passam a formar um universo articulado e coerente, ainda que desastroso em termos de funcionamento democrático da sociedade.
A expansão dos lobbies, a compra dos políticos, a invasão do judiciário e o controle dos sistemas de informação da sociedade representam alguns dos instrumentos mais importantes da captura do poder político geral pelas grandes corporações. Mas o conjunto destes instrumentos leva, em última instância, a um mecanismo mais poderoso: a apropriação dos próprios resultados da atividade econômica, por meio do controle financeiro em pouquíssimas mãos.
Vejamos agora um pouco o que são estas grandes corporações. É surpreendente, mas até 2012 não tínhamos nenhum estudo global de como funciona a rede mundial de controle corporativo. O Instituto Federal Suíço de Pesquisa Tecnológica, um tipo de MIT da Europa, selecionou 43 mil grupos mundiais mais importantes e estudou em profundidade como se dá, através de participações cruzadas e de fusões interempresariais, o controle do conjunto. Chegou a uma cifra impressionante que mudou a visão que temos do sistema econômico mundial: 737 grupos apenas controlam 80% do mundo corporativo, sendo que nestes um núcleo de 147 controla 40%. Estes últimos gigantes são essencialmente (75%) grupos financeiros. Ou seja, não precisam controlar diretamente o processo decisório, seguram o sistema, digamos assim, pelas partes delicadas, que é o acesso aos recursos. Um grupo tão limitado não precisa fazer conspirações misteriosas, são pessoas que se conhecem no campo de golfe ou no Open de Tênis da Austrália, se ajeitam confortavelmente entre si. Os autores da pesquisa concluem claramente que falar em mecanismos de mercado neste clube restrito não faz muito sentido.7
François Morin, assessor do banco central da França, concentra a sua análise na forma como os 28 maiores entre estes gigantes se articulam. Na análise estão todos: JPMorgan Chase, Bank of America, Citigroup, HSBC, Deutsche Bank, Santander, Goldman Sachs e outros, com um balanço de mais de 50 trilhões de dólares em 2012, quando o PIB mundial foi de 73 trilhões. A relação com os Estados é particularmente interessante, pois a dívida pública mundial, de 49 trilhões, está no mesmo nível que o faturamento dos 28 grupos financeiros que Morin analisa, também da ordem de 50 trilhões. Os Estados, fruto do endividamento público com gigantes privados, viraram reféns e tornaram-se incapazes de regular este sistema financeiro em favor dos interesses da sociedade.8 “Face aos Estados fragilizados pelo endividamento, o poder dos grandes atores bancários privados parece escandaloso, em particular se pensarmos que estes últimos estão, no essencial, na origem da crise financeira, logo de uma boa parte do excessivo endividamento atual dos Estados”.9
Os 28 controlam igualmente os chamados derivativos, essencialmente especulação com variações de mercados futuros: o volume atingido em 2015 é de mais de 600 trilhões de dólares, oito vezes o PIB mundial. Se pensarmos que tantos países aceitaram reduzir os investimentos públicos e as políticas sociais, inclusive o Brasil, para satisfazer este pequeno mundo financeiro, não há como não ver a dimensão política que o sistema assumiu. Os grandes traders de commodities controlam nada menos que o comércio dos grãos (milho, trigo, arroz, soja), os minerais metálicos, os minerais não metálicos e os recursos energéticos, ou seja, o sangue da economia mundial. As gigantescas variações dos preços do petróleo, por exemplo, não resultam de variações da produção ou do consumo, muito estáveis na escala planetária, mas dos processos especulativos dos gigantes financeiros.10
O sistema é hoje articulado. Um aporte particularmente forte de François Morin é a análise de como este grupo de bancos foi se dotando, a partir de 1995, de instrumentos de articulação, a GFMA (Global Financial Markets Association), o IIF (Institute of International Finance), a ISDA (International Swaps and Derivatives Association), a AFME (Association for Financial Markets in Europe) e o CLS Bank (Continuous Linked Settlement System Bank). Morin apresenta em tabelas como os maiores bancos se distribuem nestas instituições. O IIF, por exemplo, “verdadeira cabeça pensante da finança globalizada e dos maiores bancos internacionais”, constitui hoje um poder político assumido: “O presidente do IIF tem um status oficial, reconhecido, que o habilita a falar em nome dos grandes bancos. Poderíamos dizer que o IIF é o parlamento dos bancos, seu presidente tem quase o papel de chefe de Estado. Ele faz parte dos grandes tomadores de decisão mundiais”.11
O controle destes gigantes financeiros que passaram a reger a economia mundial e as decisões internas das nações é hoje simplesmente pouco viável, tanto pela dimensão, como pela estrutura organizacional sofisticada de que hoje dispõem, além evidentemente dos sistemas de controle sobre a política, o judiciário e a mídia – e portanto a opinião pública – conforme vimos acima. Mas um instrumento particularmente importante deste poder reside no uso dos paraísos fiscais, que a partir da crise de 2008 foram suficientemente estudados para que tenhamos hoje os contornos do seu funcionamento. Basicamente, para um PIB mundial da ordem de 73 trilhões de dólares, o estoque de recursos financeiros em paraísos fiscais se situa hoje entre 21 e 32 trilhões de dólares segundo a Tax Justice Network, cifra que o Economist arredonda para 20 trilhões. Para se ter uma ideia dos valores, a grande decisão da cúpula mundial sobre o clima, em Paris em 2015, foi de alocar até 2020 100 bilhões de dólares para salvar o planeta do aquecimento global: em cinco anos, duzentas vezes menos do que está aplicado em paraísos fiscais, capital improdutivo e em grande parte ilegal.
Mas não se trata apenas do desvio improdutivo de recursos financeiros necessários para financiar a reconversão tecnológica que nos permita parar de destruir o planeta e assegurar a inclusão produtiva de bilhões de marginalizados para reduzir a explosiva desigualdade. Trata-se de um mecanismo poderoso de privar os Estados de qualquer controle: praticamente todas as grandes corporações têm filiais ou empresas “laranja” nos paraísos fiscais, onde o dinheiro simplesmente desaparece em termos formais, para reaparecer com nomes de outras empresas, gerando um espaço “branco” onde o seguimento do fluxo financeiro se interrompe, permitindo toda classe de ilegalidades, em particular a evasão fiscal e inúmeras atividades ilegais como o comércio de armas e drogas. 12
Com o poder hoje muito mais na mão dos gigantes financeiros do que nas empresas produtoras, passou-se a exigir resultados de rentabilidade financeira que impossibilitam iniciativas, no nível dos técnicos que conhecem os processos produtivos da economia real, de preservar um mínimo de decência profissional e de ética corporativa. Temos assim um caos em termos de coerência com os interesses de desenvolvimento econômico e social, mas um caos muito direcionado e lógico quando se trata de assegurar um fluxo maior de recursos financeiros para o topo da hierarquia.
De que tamanhos estamos falando? As 29 corporações financeiras classificadas no SIFI (Systemically Important Financial Institutions) trabalham cada uma com um capital consolidado médio (consolidated assets) da ordem de $1,82 trilhões para os bancos e $0,61 trilhões para as seguradoras analisadas. Para efeitos de comparação lembremos que o PIB do Brasil, 7ª potência mundial, é da ordem de $1,4 trilhões. Mais explícito ainda é lembrar que, de acordo com os dados de Jen Martens, o sistema das Nações Unidas dispõe de 40 bilhões de dólares anuais para o conjunto das suas atividades, o que por sua vez representa apenas 2,3% das despesas militares mundiais. 13
Se tem uma coisa que não falta no mundo, são recursos. O imenso avanço da produtividade planetária resulta essencialmente da revolução tecnológica que vivemos. Mas não são os produtores destas transformações, desde a pesquisa fundamental nas universidades públicas e as políticas públicas de saúde, educação e infraestruturas, até os avanços técnicos nas empresas efetivamente produtoras de bens e serviços, que levam vantagem: pelo contrário, ambas as esferas, pública e empresarial, encontram-se endividadas nas mãos de gigantes do sistema financeiro, que rendem fortunas a quem nunca produziu, e que conseguem, ao juntar nas mãos os fios que controlam tanto o setor público como o setor produtivo privado, deformar radicalmente o desenvolvimento sustentável hoje vital para o mundo.