O faturamento das empresas do setor de sementes foi, em 2011, de mais de US$ 26 bilhões de dólares1, sendo que apenas seis grandes empresas transnacionais controlam as pesquisas sobre sementes geneticamente modificadas, ou transgênicas, e detêm a grande maioria das patentes: Syngenta, Bayer, BASF, Dow, Monsanto e DuPont. Essas empresas são proprietárias de 59,8% das sementes comerciais e 76,1% dos agroquímicos do mundo, e responsáveis por pelo menos 76% de todo o investimento do setor privado nesse campo.2
Os transgênicos tiveram seu uso permitido no Brasil pela primeira vez em 2003.3 A exemplo de outros países e regiões, tais como Paraguai, Uruguai, Chile, Argentina, União Europeia e Estados Unidos, o país criou legislação para reger a comercialização desses organismos geneticamente modificados (OGMs) – a Lei de Biossegurança – e um órgão encarregado de analisar os pedidos das empresas para comercializar suas sementes em território nacional, a Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio).
Assim como na União Europeia e na Argentina, a lei brasileira determina que a produção, a comercialização, o consumo e o descarte de OGMs no país devem ser guiados pelo chamado princípio da precaução4. O princípio, definido no Protocolo de Cartagena, do qual o Brasil é signatário, determina que “a ausência de certeza científica, devida à insuficiência das informações e dos conhecimentos científicos relevantes sobre a dimensão dos efeitos adversos potenciais de um organismo vivo modificado na conservação e no uso sustentável da diversidade biológica” e sobre “os riscos para a saúde humana” não pode impedir que países tomem decisões para “evitar ou minimizar esses efeitos adversos potenciais”.5 Em outras palavras, o princípio determina que, havendo dúvidas sobre a segurança de OGMs no que diz respeito ao meio ambiente e à saúde humana, sua comercialização pode ser impedida.
Contudo, diferentemente do que ocorre na União Europeia e em outros países, até hoje, nenhum dos pedidos de liberação de transgênicos por empresas do setor foi negado no Brasil, apesar de diversos estudos questionando a segurança ambiental e sanitária de vários desses organismos. São 72 OGMs aprovados: 49 plantas – majoritariamente variedades de soja, milho e algodão – e 23 vacinas, moléculas e outros. Na Argentina, antiga campeã dos transgênicos, são 35 espécies de plantas geneticamente modificadas aprovadas para comercialização. Na União Europeia, apenas um tipo de milho modificado é hoje autorizado para cultivo comercial (o MON810, da Monsanto), e 58 variedades de plantas geneticamente modificadas foram aprovadas para importação e uso como ração animal ou alimento para humanos, mas pouquíssimas são de fato comercializadas como alimento.6
Das plantas geneticamente modificadas aprovadas para uso no Brasil, seis são variedades de soja produzidas pela Monsanto, Basf (em parceria com a Embrapa), Bayer e Dow Agrosciences; 29 são variedades de milho da Monsanto, da Syngenta, da DuPont, da Dow Agrosciences e da Bayer; 12 são variedades de algodão da Monsanto, da Bayer e da Dow Agrosciences; uma é uma variedade de feijão da Embrapa; e uma é uma variedade de eucalipto da Futuragene.7
Hoje, o Brasil tem a segunda maior área plantada com sementes transgênicas no mundo (42,2 milhões de ha), segundo o International Service for the Acquisition of Agri-biotech Applications – ISAAA, ficando atrás somente dos Estados Unidos (73,1 milhões de ha). A Argentina se encontra em terceiro lugar (24,3 milhões de ha).8
A liberação da comercialização e do uso de sementes transgênicas no Brasil é resultado de uma batalha travada no Congresso e nos tribunais entre, de um lado, representantes das empresas de biotecnologia e do agronegócio, além de parte do Governo Federal (notadamente o Ministério da Ciência e Tecnologia, além do Ministério da Agricultura e do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior) e congressistas (principalmente, mas não apenas, ligados à chamada Bancada Ruralista), e, de outro, grupos contrários à liberação do plantio de transgênicos no país por causa de seus potenciais riscos à saúde humana e ao meio ambiente, aliados a outros setores do governo (principalmente o Ministério do Meio Ambiente e Ministério do Desenvolvimento Agrário). A batalha durou quase dez anos e resultou na Lei de Biossegurança de 2005, que trouxe retrocessos em relação à legislação anterior, tais como a suspensão da possibilidade de que órgãos como Ibama e Anvisa fizessem exigências ambientais e sanitárias para liberar OGMs,9 ainda que determinasse que a liberação de transgênicos deveria guiar-se pelo princípio da precaução.10
A Lei de Biossegurança também dispõe sobre a CTNBio, encarregando a comissão de “prestar apoio técnico e de assessoramento ao Governo Federal na formulação, atualização e implementação da Política Nacional de Biossegurança de OGMs e seus derivados, bem como no estabelecimento de normas técnicas de segurança e de pareceres técnicos referentes à autorização para atividades que envolvam pesquisa e uso comercial de OGMs e seus derivados”. A lei determina que, quando uma empresa pública ou privada deseje lançar um organismo geneticamente modificado no mercado – uma semente, por exemplo –, deve solicitar a autorização da CTNBio, que, depois de etapas experimentais diversas, vota a favor ou contra a liberação do organismo no mercado. Apesar de a lei mais recente determinar que o Conselho Nacional de Biossegurança, formado por 11 ministros, dê o parecer final sobre as recomendações da CTNBio, o órgão não se reúne desde julho de 2008, data da última resolução do órgão, conforme site da CTNBio.11 Isso significa que, de fato, a responsabilidade de autorizar ou não a comercialização de transgênicos recai unicamente sobre a CTNBio.
A lei de 2005 determina que a CTNBio deve decidir sobre a comercialização de OGMs “com base na avaliação de seu risco zoofitossanitário, à saúde humana e ao meio ambiente”. Ainda segundo esta lei, “a CTNBio deverá acompanhar o desenvolvimento e o progresso técnico e científico nas áreas de biossegurança, biotecnologia, bioética e afins, com o objetivo de aumentar sua capacitação para a proteção da saúde humana, dos animais e das plantas e do meio ambiente.”12
No entanto, como já dissemos, a CTNBio até hoje aprovou todos os pedidos de liberação de OGMs pleiteados por empresas de biotecnologia, apesar de diversos estudos questionando a sua segurança.13 Um estudo importante foi publicado em setembro de 2012 na revista científica Food and Chemical Toxicology. O pesquisador francês Gilles Eric Séralini 14e sua equipe realizaram experimentos de laboratório conduzidos por dois anos para testar os efeitos a longo prazo do milho transgênico da Monsanto NK 603 e do glifosato, o herbicida utilizado em associação com o milho modificado. A pesquisa, realizada com 200 ratos, revelou uma mortalidade mais alta e mais frequente associada ao consumo tanto do milho transgênico como do glifosato, com efeitos hormonais não lineares e relacionados ao sexo. As fêmeas desenvolveram numerosos e significantes tumores mamários, além de problemas hipofisários e renais. Os machos morreram, em sua maioria, de graves deficiências crônicas hepatorrenais.15Quando a pesquisa de Séralini foi publicada, o milho MK603 já havia sido liberado pela CTNBio para cultivo no Brasil. Em seu parecer, a Comissão afirmou que “o milho NK603 é tão seguro quanto as versões convencionais”, que a modificação genética “não modificou a composição nem o valor nutricional do milho”, que “há evidências cientificas sólidas de que o milho NK 603 não apresenta efeitos adversos à saúde humana e animal” e que “o valor nutricional do grão derivado do OGM referido tem potencial de ser, na realidade, superior ao do grão tradicional.”16 Depois da publicação do estudo de Séralini, o Fórum Brasileiro de Consumidores pediu que se revisasse a autorização, conforme estipula a legislação quando há novos fatos científicos, mas a CTNBio se recusou a fazê-lo. Também o milho MON 810, proibido em diversos países da Europa por falta de estudos que comprovem a sua segurança e pela existência de um estudo17 do mesmo Séralini indicando efeitos tóxicos em ratos, foi autorizado pela CTNBio.18
Para cientistas e ambientalistas estudiosos da atuação da Comissão, a liberalidade da CTNBio em aprovar OGMs se deve aos laços de seus integrantes com as empresas de biotecnologia.
A CTNBio é formada por 27 membros, todos obrigatoriamente com título de doutor, sendo 12 especialistas das áreas de saúde humana, animal, vegetal e meio ambiente, nomeados pelo ministro de Ciência e Tecnologia a partir de listas tríplices elaboradas por sociedades científicas; nove representantes de ministérios, nomeados pelos titulares das respectivas pastas; e seis especialistas em: defesa do consumidor, saúde, meio ambiente, biotecnologia, agricultura familiar e saúde do trabalhador, indicados por ministros de áreas afins a partir de listas tríplices enviadas pela sociedade civil.
A jornalista Verena Glass fez um levantamento da composição da CTNBio em 2007 e verificou ligações significativas entre eles e empresas interessadas na liberação dos OGMs: vários haviam coordenado ou participado de pesquisas patrocinadas pelas gene giants, ou faziam parte de conselhos de organizações ou associações financiadas por elas.19 Muitos conselheiros inclusive se posicionaram de forma abertamente favorável às tecnologias transgênicas. “Em 2003, oito dos atuais membros da CTNBio (Alexandre Lima Nepomuceno, Edilson Paiva, Flavio Finardi Filho, Francisco José Lima Aragão, Kenny Bonfim, Luiz Antonio Barreto de Castro, Maria Lucia Carneiro Vieira e Paulo Augusto Vianna Barroso) subscreveram a ‘Carta Aberta dos Cientistas Brasileiros’, em que afirmam que ‘o Brasil não pode abrir mão da tecnologia de organismos transgênicos’, uma vez que ‘é imprescindível para a sustentabilidade e competitividade do agronegócio brasileiro e agricultura familiar’ e ‘acarretará em benefícios sociais e econômicos para o país’”.20
O atual presidente da CTNBio, o agrônomo Edivaldo Domingues Velini,21 da UNESP, consta no site da FAPESP como tendo recebido dois auxílios de pesquisa para organizar simpósios sobre glifosato, um herbicida produzido pela Monsanto e utilizado em conjunto com variedades de plantas geneticamente modificadas fabricadas pela empresa e considerado pela OMS como “provável carcinogênico”22 (ver quadro abaixo). Segundo informações de divulgação de um desses eventos, realizado em 2011 no campus da universidade em Botucatu, “em sua 3ª edição, o Simpósio tem como tema central o ‘Uso sustentável’, um tema relevante e atual, com vistas a debater e esclarecer fatores que favoreçam a Agricultura Sustentável a Inovação Tecnológica e o Agronegócio. (…) O uso do glifosato envolve práticas conservacionistas que garantem a sustentabilidade dos recursos naturais e, portanto da própria produção agrícola. As características do glyphosate são fundamentais para a implementação do plantio direto. Ele ajuda na preservação do solo e da água, na redução do uso de máquinas, levando a uma melhor cobertura sobre o solo, redução da compactação, controle da erosão, com consequente redução do risco de assoreamento de nascentes e rios. Todos estes benefícios contribuem para a sustentabilidade do meio ambiente.”23
Para o dirigente da organização Assessoria e Serviços a Projetos em Agricultura Alternativa (AS-PTA), Jean Marc von der Weid, conforme afirmou em entrevista à Repórter Brasil, “não há na CTNBio nenhuma avaliação dos conflitos de interesses, e o governo não se preocupa com isso. Se quiséssemos uma avaliação isenta, os cientistas membros não poderiam participar de pesquisas de desenvolvimento de transgênicos, pois são parte interessada nas liberações.”24
Para Von der Weid, o fato de os cientistas terem vínculos com as empresas de biotecnologia significa que “a maioria [dos] cientistas [da CTNBio] simplesmente se recusa a analisar qualquer dossiê critico à liberação dos transgênicos, por mais sólido que seja. Não há debate, os pró-transgênicos nem escutam ou leem as avaliações críticas. Limitam-se a votar a favor das liberações”25
Agravando o problema, uma emenda parlamentar de 2007 “flexibilizou” o processo de aprovação na CTNBio, modificando o quórum mínimo necessário para a aprovação dos pedidos de liberação, que passou de dois terços dos conselheiros para maioria absoluta. Proponentes da emenda alegavam que os cientistas contrários à liberação de transgênicos praticavam o que chamavam de obstrução parlamentar. A modificação desperta preocupação, já que a aprovação por maioria absoluta não é um procedimento que revele a busca de um consenso científico mínimo, em tema para o qual se deveria adotar o princípio da precaução.
Observam-se ainda casos de “portas giratórias” – ou seja, de pessoas que saem de empresas de biotecnologia e vão trabalhar no governo elaborando legislação e depois voltam a trabalhar nas empresas. Segundo o jornal Folha de São Paulo, Beto Ferreira Martins Vasconcelos, funcionário da Casa Civil em 2005 e um dos encarregados de preparar o decreto que regulamentou a Lei de Biossegurança, havia trabalhado por cinco anos como advogado da Monsanto antes de assumir o cargo público.26
Para Darci Frigo, coordenador da organização Terra de Direitos, as transnacionais da biotecnologia também se utilizam do financiamento de campanhas eleitorais como mecanismo de captura política. “Há uma influência muito grande no direcionamento da pesquisa e também no âmbito do Congresso Nacional e do financiamento das campanhas eleitorais”, disse o advogado, em entrevista à organização Repórter Brasil. “Isso determina que os temas de interesse das empresas de biotecnologia acabem entrando na lógica do Parlamento. A bancada ruralista presta serviço à transgenia, apesar de os agricultores serem dominados pelo cartel formado por essas empresas, porque os parlamentares recebem apoio para suas campanhas eleitorais.”27
Várias são as entidades que alertam para a ausência, nos pareceres da CTNBio, de rigor científico e de adoção do princípio da precaução, previsto no Protocolo de Cartagena sobre Biossegurança e na Lei de Biossegurança de 2015, além de pesquisas em solo nacional que comprovem a segurança do plantio comercial das variedades aprovadas, tais como as ONGs Assessoria e Serviços a Projetos em Agricultura Alternativa (AS-PTA), Terra de Direitos e Greenpeace.
Como assinalado por Gilles Ferment e diversos outros pesquisadores no estudo Lavouras Transgênicas, Riscos e Incertezas, preocupa o fato de que entidades reguladoras orientem suas decisões a partir de publicações geradas pelas empresas, em que as informações de fundo tendem a ser ocultadas do escrutínio da sociedade – em muitos casos os dados não são disponibilizados sequer para membros das agências reguladoras que os avaliam”.28
Em 2007, as liberações dos milhos transgênicos Liberty Link, da Bayer, e MON 810, da Monsanto (proibido na França, Áustria, Grécia, Luxemburgo, Hungria, Itália, Polônia e Alemanha), foram questionadas pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis (Ibama), que apontaram lacunas nos pareceres técnicos que fundamentaram as aprovações. A Anvisa, por exemplo, apontou a “insuficiência ou inexistência de estudos toxicológicos ou de alergenicidade para comprovar a segurança do milho transgênico para o consumo humano” no processo da Bayer, e o Ibama e o Ministério do Meio Ambiente ressaltaram a inexistência de estudos ambientais prévios comprovando a segurança dos OGMs. Os órgãos apresentaram recursos contra as liberações ao Conselho Nacional de Biossegurança (CNBS)29, que manteve os pareceres da CTNBio.30
No mesmo sentido, o Conselho Nacional de Segurança Alimentar (CONSEA), tem expressado preocupação com o funcionamento da CTNBio, conforme carta enviada à presidente Dilma Rousseff em maio de 2014.31 Em 2015 chegou a enviar a recomendação ao órgão sugerindo a não aprovação da liberação do milho DAS-40278-9, frente aos riscos à saúde animal, humana e ambiental.32
Outro exemplo emblemático é o do eucalipto. O Brasil foi o único país do mundo a liberar o plantio comercial de eucalipto transgênico. O projeto é da Futuragene/Suzano, que, segundo a ABRASCO,33 reconhece não ter avaliado os efeitos da modificação genética que faz a planta aumentar a produção de madeira. Além disso Paulo Yoshio Kageyama, professor titular da USP, agrônomo, doutor em genética e membro da CTNBio, coloca que o potencial impacto na fauna de polinizadores (nativos e exóticos) também não foi devidamente estudado, levando em conta que o próprio estudo da empresa demonstra que o pólen do transgênico possui uma concentração muito maior do efeito da transgenia do que outros tecidos da planta, o que pode levar ao colapso das colmeias. A empresa também teria deixado de avaliar os aspectos nutricionais do mel produzido por abelhas que visitaram as árvores transgênicas e não realizou nenhum experimento sobre sua toxicidade e alergenicidade.34
A liberação de OGMs ao mercado sem que se leve em consideração seus impactos coloca em risco a saúde da população como um todo, seja pelo efeito da transgenia, ainda em estudo, seja pelo efeito do uso intensivo de agrotóxicos que essa tecnologia termina por demandar de forma crescente com o tempo.
Com relação à transgenia, o estudo Lavouras Transgênicas, Riscos e Incertezas identifica dois riscos principais: “a) riscos associados à nova função conferida por meio da transgenia, a proteína inseticida sintetizada em plantas Bt, por exemplo e à presença do(s) transgene(s) associado(s); b) riscos associados a efeitos não desejados resultantes do próprio processo de transgenia, como a alteração de vias metabólicas que podem resultar na síntese de novas proteínas, potencialmente tóxicas ou alergênicas.”35
Os danos à saúde provocados pelo uso de OGMs também advêm de seu uso casado com agrotóxicos. Segundo nota pública de 2015 do Instituto Nacional do Câncer José Alencar Gomes da Silva (INCA), órgão do Ministério da Saúde, o aumento da incidência dos casos de câncer está ligado ao aumento do uso de agrotóxicos, e o uso de agrotóxicos está, por sua vez, ligado ao aumento do uso de transgênicos.36 Na nota, o INCA elenca diversos estudos que comprovam essa relação:
As intoxicações agudas por agrotóxicos são as mais conhecidas e afetam, principalmente, as pessoas expostas em seu ambiente de trabalho (exposição ocupacional). São caracterizadas por efeitos como irritação da pele e olhos, coceira, cólicas, vômitos, diarreias, espasmos, dificuldades respiratórias, convulsões e morte. Já as intoxicações crônicas podem afetar toda a população, pois são decorrentes da exposição múltipla aos agrotóxicos, isto é, da presença de resíduos de agrotóxicos em alimentos e no ambiente, geralmente em doses baixas. Os efeitos adversos decorrentes da exposição crônica aos agrotóxicos podem aparecer muito tempo após a exposição, dificultando a correlação com o agente. Dentre os efeitos associados à exposição crônica a ingredientes ativos de agrotóxicos podem ser citados infertilidade, impotência, abortos, malformações, neurotoxicidade, desregulação hormonal, efeitos sobre o sistema imunológico e câncer. Os últimos resultados do Programa de Análise de Resíduos de Agrotóxicos (PARA) da Anvisa revelaram amostras com resíduos de agrotóxicos em quantidades acima do limite máximo permitido e com a presença de substâncias químicas não autorizadas para o alimento pesquisado. Além disso, também constataram a existência de agrotóxicos em processo de banimento pela Anvisa ou que nunca tiveram registro no Brasil.37
Segundo dossiê da ABRASCO sobre impactos dos agrotóxicos na saúde, 22 dos 50 princípios ativos de herbicidas mais empregados no Brasil estão banidos em outros países.38 A tabela abaixo mostra alguns deles:
AGROTÓXICOS | PROBLEMAS RELACIONADOS | PROIBIDO OU RESTRITO |
FORATO | Alta toxicidade aguda e neurotoxicidade. | Comunidade Europeia, Estados Unidos – proibido |
Fosmete | Neurotoxicidade. | Comunidade Europeia – proibido |
Glifosato | Casos de intoxicação, solicitação de revisão da Ingestão Diária Aceitável (IDA) por parte de empresa registrante, necessidade de controle de impurezas presentes no produto técnico e possíveis efeitos toxicológicos adversos. | Dinamarca, Sri Lanka, Holanda, El Salvador – restrito |
Lactofem | Carcinogênico para humanos. | Comunidade Europeia – proibido |
Metamidofós | Alta toxicidade aguda e neurotoxicidade. | Comunidade Europeia, China, Índia – proibido A ser proibido no Brasil |
Paraquate | Alta toxicidade aguda e toxicidade. | Comunidade Europeia – proibido |
Parationa Metílica | Neurotoxicidade, suspeita de desregulação endócrina, mutagenicidade e carcinogenicidade. | Comunidade Europeia, China – proibido |
Tiram | Estudos demonstram mutagenicidade, toxicidade reprodutiva e suspeita de desregulação endócrina. | Estados Unidos – proibido |
Triclorfom | Neurotoxicidade, potencial carcinogênico e toxicidade reprodutiva. | Comunidade Europeia – proibido Proibido no Brasil |
As avaliações de risco para a saúde (e para o meio ambiente) conduzidas pela CTNBio, contudo, não consideram os efeitos dos agrotóxicos e a presença de seus resíduos tóxicos nas lavouras e nos alimentos provenientes de transgênicos. Segundo artigo de Verena Glass, a CTNBio alega que não é sua função avaliar riscos à saúde e ao meio ambiente de agrotóxicos, mas sim de transgênicos, e que essa tarefa caberia à Anvisa ou ao Ibama.
Ao adquirir sementes transgênicas, o agricultor fica proibido, por meio de contrato, de guardar sementes para utilizar na safra seguinte ou de trocá-las com outros agricultores, costumes comuns na pequena agricultura. Se o agricultor o fizer, pode ser processado pela empresa e obrigado a pagar royalties. Isso significa, portanto, a perda da autonomia do agricultor, dada a dependência tecnológica que se estabelece com relação às empresas. Além disso, segundo a ONG Terra de Direitos, o valor dos royalties é estabelecido pelas empresas, sem qualquer participação do Estado ou dos agricultores.
Para a organização Repórter Brasil, a ação das empresas transnacionais é norteada pela “política do fato consumado” na introdução de seus produtos, ou seja, práticas como a distribuição ilegal de sementes ou a contaminação deliberada de lavouras convencionais.39 A própria aprovação da comercialização de transgênicos no Brasil se deu dessa forma. Antes da liberação da soja transgênica no país, agricultores do Rio Grande do Sul plantaram sementes vindas da Argentina ilegalmente. Foi diante da pressão dos agricultores para poder colher e comercializar essa soja que o Brasil aprovou a sua liberação.40
Segundo Darci Frigo, advogado da ONG Terra de Direitos, um dos métodos utilizados pelas transnacionais é o de cooptar cooperativas agropecuárias para fazer a distribuição das suas sementes e, à medida que as empresas de sementes vão sendo compradas e o mercado dominado, colocar à venda apenas a semente com a qual terão mais lucro. Em depoimento à Repórter Brasil, Frigo afirma que “aqui no Brasil, muitas vezes, os agricultores iam comprar as sementes convencionais e não as encontravam mais, ou as encontravam em quantidades muito pequenas”, o que os obrigava a comprar as sementes que, por exemplo, a Monsanto impunha no mercado. “A imposição do pacote tecnológico, a imposição da transgenia, se deu a ferro e fogo”, afirma. “Quando os agricultores se deram conta, haviam entrado em um caminho sem volta”.41
Produtores que utilizam sementes crioulas ou simplesmente sementes não transgênicas também são afetados, já que o índice de contaminação das lavouras é grande, conforme comprovam diversos estudos.42
Segundo os autores da publicação Lavouras Transgênicas: Riscos e Incertezas, o fluxo gênico por polinização pode ocorrer entre indivíduos separados por grandes distâncias, e “o histórico de contaminações ocorridas ao redor do mundo mostra que nenhuma variedade convencional que possua equivalentes transgênicas estará protegida contra o fluxo gênico por polinização”.43
Em 2006, lavouras experimentais do arroz transgênico da Bayer nos EUA contaminaram plantios comerciais e causaram prejuízos de cerca de US$ 1 bilhão em todo o mundo, de acordo com estudo divulgado pelo Greenpeace Internacional.44 Um estudo de monitoramento do fluxo gênico do milho transgênico no Paraná, realizado pelo Departamento de Fiscalização e Defesa Agropecuária do Estado em 2009 para verificar a eficácia da Resolução Normativa da CTNBio comprovou oficialmente que as normas de segurança são ineficazes, uma vez que foi detectada contaminação em todas as áreas monitoradas. Em 2004, a empresa Eco Brazil Organics Ltda, no Paraná, teve sua lavoura de soja orgânica contaminada, o que a obrigou a paralisar suas atividades e causou um prejuízo de US$ 3 milhões. Os casos são relatados por Verena Glass em reportagem sobre a CTNbio.45
Agravando o quadro, no Rio Grande do Sul, estado em que o plantio transgênico foi iniciado ilegalmente em 1997-98,46 há casos, segundo a ONG Terra de Direitos,47 em que agricultores que plantavam soja convencional foram obrigados a pagar royalties depois que suas lavouras foram contaminadas pela soja transgênica. E isso mesmo com a Lei de Biossegurança de 1995, que já determinava que o produtor de transgênicos deve ser responsabilizado por danos causados a terceiros.
Isso significa que a agricultura não transgênica passa a estar ameaçada, e portanto, a própria agrobiodiversidade.
Fica evidente que a atuação da CTNBio tem servido para aprovar a comercialização dos transgênicos e não para de fato avaliar os seus riscos. Frente a esse quadro, é clara a urgência de se reestruturar a CTNBio. Em primeiro lugar, deve voltar a ser consultiva, isto é, os pareceres finais devem voltar a passar também pelo Ibama e Anvisa. Deve ser representativa, com a presença de camponeses e outros atores, como sindicatos interessados e cientistas escolhidos pelas suas associações de classe (e não por indicação dos ministérios) e que respondam às suas associações acerca do que estão fazendo. Nesse sentido, seria importante elencar um conjunto de especializações científicas que deveriam estar presentes, tais como alergistas, toxicólogos, endócrinos, ecólogos etc.
O grande negócio das empresas não vem apenas da venda das sementes. O “pacote tecnológico” oferecido pelas gigantes da genética inclui os agrotóxicos necessários para que elas cresçam.
Analisando a tabela de produtos liberados pela Comissão (quadro 1), nota-se que, na grande maioria dos casos, o objetivo da modificação genética é tornar determinada espécie tolerante a um herbicida, que, assim, passa a poder ser utilizado para dizimar as chamadas espécies daninhas e pragas ao redor da plantação sem afetar a lavoura. Acontece que o herbicida ao qual a espécie é tolerante é produzido pela mesma indústria que detém a patente da semente transgênica. Nota-se, assim, que o uso de OGMs implica a venda casada de sementes com os agrotóxicos (fertilizantes, herbicidas e pesticidas).
Embora as empresas afirmem que uma das vantagens do uso de OGMs seja a menor quantidade de agrotóxico necessário nas safras, o uso de agrotóxicos vem aumentando no Brasil. No caso do glifosato (agrotóxico da Monsanto muito utilizado em conjunto com a soja), o aumento foi exponencial. Isso porque as chamadas plantas daninhas que crescem ao redor da soja criam resistência ao glifosato, o que leva à necessidade de aplicação de doses cada vez mais altas para controlá-las, elevando ainda mais o lucro das empresas de biotecnologia.
Segundo a ABRASCO, o discurso adotado pelas empresas de biotecnologia, de que a transgenia seria uma tecnologia para inibir o uso de agrotóxicos “caiu em descrédito”. O cultivo da soja da Monsanto Roundup Ready®, tolerante ao glifosato, por exemplo, induziu a um maior consumo desse herbicida. “Também se observa o fenômeno de resistência a esse veneno das plantas adventícias não desejadas, exigindo maior quantidade de sua aplicação e associação com outros agrotóxicos”, afirma a entidade. “Além disso, no processo de colheita dessa soja transgênica são utilizados, como dessecante/maturador, outros herbicidas extremamente tóxicos, como o paraquat, o diquat e o 2,4-D.”48
Em entrevista ao site Opinião e Notícia, o engenheiro agrônomo Rubens Nodari, professor da Universidade Federal de São Carlos (UFSC) e ex-membro da CTNBio, afirmou temer que os interesses econômicos e a pressão das grandes fabricantes de agrotóxicos orientem as decisões da Anvisa sobre a segurança desses produtos. Segundo Nodari, a princípio, no Brasil, “o limite máximo de resíduos de glifosato permitido na soja, cultura que representa 50% do consumo de agrotóxicos no país, era de 0,2 ppm (partes por milhão). Às vésperas da liberação da soja transgênica, em 1998, este limite foi alterado para 20 ppm, ou seja, aumentou em 100 vezes. Logo depois, a agência voltou atrás e baixou para 2,0 ppm. Em 2004, o órgão ampliou novamente o limite para 10 ppm (50 vezes a dose inicial)”.
“Como é que um produto que era considerado tóxico de repente passa a ser considerado menos tóxico?”, questiona. “O produto não foi alterado, e em um curto espaço de tempo passou por quatro classificações diferentes. Hoje existem centenas de estudos indicando que ele é um desregulador endócrino, que mata organismos aquáticos, que causa câncer em ratos. Se ingerido, ele vai acionar genes em momentos errados, em lugares errados. E as pessoas estão se alimentando de glifosato.”49
O consumo médio de agrotóxicos vem aumentando também em relação à área plantada. Segundo os pesquisadores Wanderley Pignati e Jorge Machado, passou-se de 10,5 litros por hectare (l/ha) em 2002 para 12 l/ha em 2011 (ver tabela abaixo). Tal aumento está relacionado a vários fatores, como a expansão do plantio da soja transgênica, que amplia o consumo de glifosato, a crescente resistência das ervas “daninhas”, dos fungos e dos insetos demandando maior consumo de agrotóxicos e/ou o aumento de doenças nas lavouras, como a ferrugem asiática na soja, o que aumenta o consumo de fungicidas. Outro importante estímulo ao consumo advém da diminuição dos preços e da isenção de impostos dos agrotóxicos, fazendo com que os agricultores utilizem maior quantidade por hectare.50
2002 | 2003 | 2004 | 2005 | 2006 | 2007 | 2008 | 2009 | 2010 | 2011 | |
Agrotóxicos (milhões del) |
599,5 | 643,5 | 693 | 706,2 | 687,5 | 686,4 | 673,9 | 725 | 827,8 | 852,8 |
Fertilizante (milhões de Kg) |
4.910 | 5.380 | 6.210 | 6.550 | 6.170 | 6.070 | 6.240 | 6.470 | 6.497 | 6.743 |
De acordo com o INCA, no Brasil, a venda de agrotóxicos saltou de US$ 2 bilhões para mais de US$ 7 bilhões entre 2001 e 2008 e, em 2009 ultrapassamos a marca de 1 milhão de toneladas, o que equivale a um consumo médio de 5,2 kg de veneno agrícola por habitante.51 Segundo a agência de notícias Reuters, o Brasil tornou-se o maior consumidor de pesticidas do mundo em 2012.52