A crise ambiental e ecológica que se radicaliza a cada dia é, para muitos pesquisadores, cientistas e especialistas, o maior desafio enfrentado pela humanidade. A piora da qualidade e a escassez de água (sentidas, por exemplo, na região Sudeste do Brasil), a acidificação das águas dos oceanos, a deterioração do solo, com ampliação do processo de desertificação, as mudanças climáticas, a perda de biodiversidade no mundo, a sobre-exploração da pesca e a perda de biodiversidade; o acúmulo de lixo tóxico, inclusive resíduos nucleares; a redução das florestas e a poluição dos rios atingem diretamente a saúde de homens e mulheres, sobretudo nos países e regiões mais pobres de todo o mundo.1 Grande parte das pesquisas relativas ao tema vinculam tal crise ao modelo de desenvolvimento escolhido pela maioria dos países,2 que adota um paradigma que retifica o consumo e a utilização dos bens comuns (água, minérios, ar, conhecimento, solo etc.) de forma altamente predatória, agravado pelo crescimento da população.3
Uma das principais consequências deste processo de crise, e a que talvez esteja mais diretamente relacionada aos padrões de uso e consumo estabelecidos pelo sistema, é a das mudanças climáticas. Embora seja verdade que o nosso planeta tem sofrido ciclos de aquecimento e arrefecimento ao longo de sua história geológica, pesquisas desenvolvidas pelos cientistas vinculados ao Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas4 indicam que os atuais processos de mudança climática e aquecimento global se originaram no século XVIII, como resultado da Primeira Revolução Industrial, que não só aumentou a quantidade de gases de efeito estufa (dióxido de carbono, metano, óxido nitroso) emitidos na atmosfera, mas também acelerou a destruição de diferentes ecossistemas em decorrência da busca por matérias-primas e terras a partir da conquista colonial. Ou seja, para a maioria dos cientistas, as mudanças climáticas começaram com a expansão do capitalismo industrial em todo o mundo.5
Mesmo que diferentes setores impulsionem o discurso público de que “todos somos parte do problema”, pesquisas como as de Chancel e Piketty6 defendem que esta crise tem como seus principais condutores as empresas de petróleo, as automotivas, as mineradoras, as metalúrgicas, de serviços públicos etc. Essas empresas gastam anualmente bilhões de dólares em campanhas que visam negar a mudança climática, e criaram grupos de pressão, como a Global Action Coalition e o Board of Environmental Information, que arregimentaram “cientistas” e especialistas em relações públicas para convencer jornalistas, líderes e a população em geral de que os riscos da mudança climática são muito imprecisos para justificar políticas de regulamentação sobre a produção de gases de efeito estufa.7 Um estudo publicado pelo The Guardian afirma que “estas organizações têm uma posição coerente sobre as alterações climáticas: que a ciência é contraditória, os cientistas estão divididos, os ambientalistas são charlatões, mentirosos ou tolos e, se os governos tomassem medidas para evitar o aquecimento global, colocariam em risco a economia mundial sem uma boa RAZÃO”.8 Para pesquisadores, os fóruns nacionais, binacionais, multilaterais mais importantes estão suscetíveis à influência direta desses grandes grupos empresariais que, muitas vezes com o apoio dos governos, avançam com propostas de ação disfarçada de soluções, maximizando lucros, abrindo “novas formas de negócio” e aprofundando ainda mais a crise climática. Para alguns autores, essas falsas “soluções” são cientificamente falaciosas e sobrevivem por meio de estratégias de marketing que visam aumentar os lucros e lavar a imagem das empresas e consciência dos consumidores preocupados com a degradação ambiental.9
As estratégias utilizadas por estes grupos vão desde o uso de generalizações a partir de uma seleção de dados reais (como o arrefecimento da troposfera) até a disseminação de notícias falsas ou desatualizadas.10 Em 2005, veio a público, por exemplo, que a companhia petrolífera britânica Exxon Mobil havia financiado pesquisadores de um think tank estadunidense conservador (American Enterprise Institute) – bastante próximo à administração Bush Jr. – para que elaborassem relatórios que se contrapusessem às descobertas feitas pelo Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC, por suas siglas em inglês). Outros grandes doadores são os irmãos Charles e David Koch, donos da Koch Industries, envolvida no negócio do petróleo, papel e produtos químicos em mais de 60 países. Segundo um relatório publicado em 2010 pela organização ambiental Greenpeace,11 as empresas dos irmãos Koch haviam “investido” pouco menos de US$ 25 milhões em organizações como Americans for Prosperity, Instituto Fraser, Instituto Independência etc., comprando “material científico” que se opõe ao reconhecimento das alterações climáticas, com ressonância (inclusive) dentro do sistema das Nações Unidas, através dos seus mais poderosos Estados-membros.
Uma outra estratégia está ligada ao “apoio” fornecido por grandes corporações ao próprio funcionamento do sistema ONU. Não é incomum que grandes empresas multinacionais – muitas delas com um longo histórico de violações dos direitos humanos e contaminação do meio ambiente – como a Dow Química, Coca-Cola, Shell e Rio Tinto apareçam como patrocinadores principais dos eventos da ONU ou como parceiros em projetos de suas diferentes agências.12 O próprio sistema de governança da ONU foi capturado: a ideia de multistakeholder governance model,13 que tem aparecido recorrentemente nas negociações internacionais em torno do desenvolvimento sustentável e do financiamento para o desenvolvimento,14 na prática, significa convidar o setor privado, agora diretamente e com papel de financiadores, para a mesa onde estão sentados os países. Um exemplo desta prática acontece no caso das roundtables globais sobre insumos para biocombustíveis, principalmente o óleo de palma. Nessas mesas-redondas – com poder de estabelecer acordos vinculantes para o setor – têm assento as maiores empresas interessadas no insumo, como a AGRIPALMA ou a belga SOCFINCO. Segundo relatório da organização WWF,15 o óleo de palma é a base de praticamente metade dos produtos industrializados disponíveis em um supermercado. Cremes de barbear, xampus, batons, chocolates, sorvetes, macarrão instantâneo, repelentes, todos levam o subproduto da palmeira de dendê. O referido relatório informa que a expansão da fronteira agrícola para a produção da palma, junto com a soja e a pecuária comercial, são os maiores responsáveis pelo desmatamento em curto prazo.
As organizações ambientalistas que participam dessas mesmas roundtables denunciam há anos os esforços do setor empresarial para promover uma lavagem verde (greenwashing) das práticas implementadas por elas próprias. A organização Amigos da Terra Internacional, por exemplo, indica que
Existe uma crescente influência das empresas sobre as posições dos governos nacionais em negociações multilaterais; representantes de empresas dominam certos espaços de discussão na ONU e algumas organizações da ONU; aos grupos empresariais é dado papel consultivo privilegiado; funcionários da ONU vão e voltam do setor privado; e – por último, mas não menos importante – as agências da ONU estão cada vez mais dependentes financeiramente do setor privado. E uma grande causa de preocupação é o surgimento de uma ideologia entre algumas agências da ONU e seus funcionários segundo a qual o que é bom para as empresas é bom para a sociedade. Isso se reflete na substituição de políticas e medidas destinadas a abordar o papel das empresas na criação dos vários problemas que enfrentamos por políticas que visam definir esses problemas nos termos ditados pelo setor corporativo, atendendo as suas necessidades, sem abordar as causas subjacentes das múltiplas crises.16
Essa lógica não se dá somente nos temas relacionados ao clima. A maior parte de todo o “apoio” dado ao tema da Segurança Alimentar e Nutricional está ligada – de uma forma ou outra – às grandes corporações.17 “O Fundo Internacional para Desenvolvimento Agrícola da ONU (FIDA), que supostamente trabalha pelos interesses dos mais pobres, tem um acordo especial com a Fundação Bill e Melinda Gates. A Fundação Gates tem ligações estreitas com multinacionais como Monsanto e Dupont, que promovem falsas soluções para a crise alimentar como os organismos geneticamente modificados e a confiança na biotecnologia”.18 O que ocorre é que, com “o pacote de benefícios corporativos”, vêm os compromissos com “novas tecnologias”, que colocam em perigo o direito dos povos ao acesso a comida. Um exemplo é a utilização das sementes terminator, que são sementes modificadas geneticamente para ficarem estéreis a partir da segunda geração, impedindo que o produtor possa utilizá-las para que se “multipliquem vegetativamente” e obrigando que repita a compra todas as vezes que deseje plantar. Os “benefícios corporativos” obrigam os pequenos e médios produtores a usar este tipo de semente.
O mesmo ocorre com a água, com as tentativas de torná-la uma commodity/mercadoria. Isso criaria mais oportunidades para as empresas buscarem lucro, enquanto privaria as pessoas de seu direito universal à água e colocaria em risco o acesso a água e saneamento básico para milhões de pessoas em todo o mundo. Durante a segunda Conferência Mundial sobre o Desenvolvimento Sustentável realizada em 2002 na África do Sul (conhecida também como Rio+10), importantes membros do Conselho Mundial para o Desenvolvimento Sustentável (WBCSD – World Business Council for Sustainable Development) fizeram enorme pressão em nome de setores empresariais que utilizam muita água (heavy users) na sua linha de produção, tais como Veolia, Suez, Coca-Cola, PepsiCo e Dow Química, entre outras grandes companhias. Buscavam, entre outras coisas, um lugar mais estratégico nas negociações sobre o tema. No relatório lançado no mesmo ano (2002), chamado “Água para os Pobres”,19 o conselho defendeu acelerar as parcerias público-privadas (PPPs) e facilitar o investimento privado como a “nova estratégia para o fornecimento eficiente de água e serviços de saneamento”.20
Além destas estratégias citadas, muitas empresas fazem lobby diretamente junto aos Estados nacionais, dos mais débeis aos mais poderosos, para que atuem diretamente na dinâmica multilateral. Isto significa que representantes das grandes corporações têm contato direto com os negociadores/tomadores de decisão que representam os países nos diferentes fóruns internacionais.
Emulando o que ocorre em âmbito internacional, o lobby exercido pelo setor privado atua fortemente no Brasil. À guisa de exemplo, propomos analisar o processo de aprovação do novo Código Florestal (2012) e o enorme lobby feito pelas grandes corporações ligadas ao agronegócio.
A aprovação do Código Florestal21 no ano de 2012 é, de muitas formas, paradigmática para o debate proposto aqui. Após quatro anos consecutivos de queda no desmatamento, houve aumento significativo na área desmatada após a aprovação do código. Entre agosto de 2012 e julho de 2013, houve aumento de 28% no desmatamento em relação ao mesmo período entre 2011 e 2012.22 Ou seja, o novo código “serviu como estímulo” à perda de 5.843 km² de floresta só no primeiro período de sua vigência. Na Amazônia Legal, o impacto foi ainda maior: aumento de 437% no desmatamento em uma comparação entre junho de 2012 e o mesmo mês em 2013.23 As consequências desta ampliação no desmatamento são drásticas. Uma série de pesquisas independentes indicam que este processo é uma das causas da crise de abastecimento de água no Sudeste: a ausência de árvores influenciaria na geração de chuvas para as regiões Centro-Oeste, Sudeste e Sul do Brasil, que são produzidas em parte pela umidade que vem da Amazônia. Com menos árvores, menos umidade chega à atmosfera e ocorrem menos chuvas.24
Os principais interessados na aprovação do novo Código Florestal foram as grandes empresas do agronegócio que atuam no Brasil, já que a norma representou um enfraquecimento da legislação ambiental brasileira. Entre as mudanças aprovadas estavam a diminuição dos critérios de definição de uma área de preservação permanente (APP)25 e a redução da necessidade de sua recomposição em caso de desmatamento irregular; a eliminação da exigência de recomposição das reservas legais em propriedades de até 4 módulos fiscais; a flexibilização dos critérios de compensação de áreas desmatadas; e a anistia dos proprietários que haviam descumprido a lei até 2008.
Tais mudanças são um risco concreto para o meio ambiente. As APPs, por exemplo, foram reduzidas de tamanho, possibilitando que áreas de florestas sejam desmatadas para o cultivo agrícola. A medida que flexibiliza a recomposição das reservas legais26 permite que os proprietários que cometeram o crime de desmatar dentro da reserva legal não sejam obrigados a recompor com a vegetação original; quando isso ocorre nos leitos dos rios (matas ciliares), por exemplo, ocorrem assoreamentos, diminuição da calha dos rios, empobrecimento dos ecossistemas aquáticos etc.
Ambientalistas defendem que a pior medida do Novo Código diz respeito à anistia dos proprietários que descumpriram o código vigente até 2008. Ou seja, todos os crimes ambientais cometidos antes de 22 de julho de 2008 foram perdoados sem nenhuma pena ou necessidade de pagamento de multa ou recomposição da área desmatada. As multas pendentes dos grandes proprietários de terra chegavam a muitos milhões de reais.
O jornal Folha de São Paulo,27 no período da discussão do Novo Código Florestal (NCF), teve acesso a uma lista sigilosa e atualizada das 150 maiores multas do tipo expedidas pelo órgão ambiental e separou as 139 que superavam R$ 1 milhão. Dessas, 103 (ou pouco menos que 75%) seriam (e, de fato, foram) suspensas se mantido na Câmara o texto do código aprovado no Senado. As multas milionárias anistiadas somam R$ 492 milhões (60% do total das multas acima de R$ 1 milhão) e se referem à destruição de 333 mil hectares de vegetação – equivalente a duas cidades de São Paulo. Esse item em particular está ainda sub judice no Superior Tribunal Federal, sendo que a decisão do Superior Tribunal de Justiça foi que o Novo Código Florestal não poderia ter anistiado nenhum proprietário.
Mesmo com estes números, o discurso da bancada ruralista no Congresso é de que o Novo Código era de interesse dos pequenos produtores. Um dos mais ativos defensores dessa posição na época foi o senador Blairo Maggi 28 O chamado rei da soja é presidente do Grupo Maggi, que ostenta a posição de maior produtor individual de soja do mundo e responsável isolado por quase 5% da produção anual do grão no Brasil. Apesar do discurso dos representantes do agronegócio, de apoio ao pequeno agricultor e à agricultura familiar, claramente, quem saiu ganhando foram os interesses dos grandes latifundiários e daquelas empresas interessadas na exploração acelerada dos recursos naturais.29
Para a elaboração do código, formou-se uma comissão especial, como é de praxe. Dos 18 deputados federais que integraram essa comissão, 13 receberam (juntos) aproximadamente R$ 6,5 milhões30 doados por empresas do setor de agronegócio, pecuária e até do ramo de papel e celulose. Em julho, foram justamente esses 13 deputados que votaram a favor do código. Em votação nominal, o parecer do relator, com substitutivo e complementação de voto, foi aprovado. Votaram a favor os deputados Anselmo de Jesus (PT-RO), Ernandes Amorim (PTB-RO), Homero Pereira (PSD-MT), Luís Carlos Heinze (PP-RS), Moacir Micheletto (PMDB-PR), Paulo Piau (PMDB-MG), Valdir Colatto (PMDB-SC), Reinhold Stephanes (PSD-PR), Marcos Montes (DEM-MG), Moreira Mendes (PSD-RO), Duarte Nogueira (PSDB-SP), Cezar Silvestri (PPS-PR) e Aldo Rebelo (PCdoB-SP). Votaram contra os deputados Dr. Rosinha (PT-PR), Ricardo Tripoli (PSDB-SP), Rodrigo Rollemberg (PSB-DF), Sarney Filho (PV-MA) e Ivan Valente (PSOL-SP). No final, o projeto foi aprovado por 13 votos a 5.
Uma das empresas que tinha fortes interesses neste processo era a Bunge Fertilizantes. Essa empresa é um dos diversos braços da multinacional Bunge Limited, que é uma das três maiores empresas de trading e processamento de alimentos e fertilizantes do mundo. O conglomerado internacional tem atividade em 40 países e emprega mais de 35 mil pessoas diretamente.31 Trata-se de um gigante que atua do campo à mesa do consumidor, comercializando e processando grãos (principalmente soja, trigo e milho), produzindo alimentos (óleos, margarinas, maioneses, azeites, arroz, atomatados, farinhas e misturas para bolos) e atuando em serviços portuários e de logística. Essa corporação é a que mais vezes aparece nas declarações dos deputados da bancada ruralista,32 tendo financiado oito dos 13 que votaram a favor do novo código e que concorreram à reeleição. Destes, sete receberam R$ 70 mil cada e um, R$ 80 mil, o que resulta em R$ 500 mil distribuídos somente entre políticos da comissão especial. O valor equivale a 20% do total de recursos destinados a esses deputados. No cômputo total, a Bunge doou pouco mais de R$ 2,5 milhões aos deputados que participaram das eleições de 2010.
A vitória do projeto no plenário foi ainda mais ampla do que na comissão especial: passou com 410 votos favoráveis, 63 contrários e uma abstenção. O PSOL e o PV foram os únicos partidos cuja totalidade de deputados votaram pela rejeição da norma. Além deles, houve votos contrários de algumas dissidências em outros partidos. Já o PP, PMDB, DEM, PTB, PCdoB, PRB, PRP, PRTB e PHS tiveram 100% dos seus deputados apoiando o projeto. Essa vitória fortaleceu a bancada ruralista na Câmara, a ponto de seus deputados subsequentemente quebrarem o acordo feito com o governo para retirar a Emenda 164 da pauta. A emenda, considerada por diversos ambientalistas como a grande vilã do novo Código Florestal, permite a consolidação de plantações e pastos em áreas de preservação permanente e em reservas legais feitas até junho de 2008. O dispositivo também prevê que os Estados poderão legislar sobre políticas ambientais, juntamente com a União. Mais uma vez, o resultado foi de vitória dos ruralistas, com 273 votos a favor e 182 votos contrários a emenda, além de duas abstenções.
Além de financiar diretamente os deputados que elaboraram, debateram e aprovaram o Código Florestal, as grandes empresas usaram outras estratégias a fim de legitimar a nova legislação, similares às que vimos anteriormente no contexto das Nações Unidas. A CNA (Confederação Nacional da Agricultura) financiou diversos eventos para parlamentares que se destinavam a “debater” o Código, todos eles realizados em locais paradisíacos e com envolvimento direto da Frente Nacional Parlamentar da Agricultura, que reúne a bancada ruralista. Além disso, emulando o que ocorre no plano internacional, “surgiram” uma série de artigos e estudos que defendiam os benefícios da nova legislação.33
Um outro exemplo paradigmático é que a Basf financiou a escola de samba Vila Isabel, que venceu o carnaval de 2013 com o enredo “A Vila canta o Brasil, celeiro do mundo – Água no feijão que chegou mais um”. A abordagem do desfile foi a mesma da campanha “Sou Agro”, da CNA: utilizar o imaginário do pequeno agricultor e da produção de alimentos para mascarar e justificar os interesses dos latifundiários.
O que podemos entender a partir do rápido exame dos processos visitados por este artigo é que a influência das grandes corporações subverte e enfraquece a democracia e quiçá a justiça. Cabe lembrar a teoria dos Três Poderes de Montesquieu em Do Espírito das Leis, de 1748, segundo a qual “cada poder [Executivo, Legislativo e Judiciário] com suas atribuições equilibraria a autonomia e interviria quando necessário no outro. Não seria uma separação absoluta entre eles, mas sim uma atuação harmônica”.34 Tal modelo político se tornou paradigmático para muitos países democráticos, incluindo o Brasil onde, segundo consta no artigo 2o da Constituição de 1988: “São poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário”. No entanto, a prática é outra.
Como mostra o presente artigo, o Novo Código Florestal Brasileiro, desde o momento em que foi apresentado pelo deputado Sérgio Carvalho (PEN – RJ) até a sanção da presidente Dilma, exemplifica o desequilíbrio na atuação dos grupos de interesses que trabalharam no tema. Ao transformar o Congresso em campo de negociações, onde a troca de votos entre grupos de interesses é evidente, o interesse privado sobressaiu-se, ou seja, ficou acima do interesse público: as consequências negativas da aprovação do Novo Código para a saúde pública, a biodiversidade, o aquecimento global, a qualidade e a disponibilidade da água potável etc. são incomensuráveis.
Foi a probabilidade de o Novo Código causar tais estragos o que fez com que a sociedade civil brasileira se mobilizasse por meio da campanha pública “Veta Dilma”. Também foi lançada a campanha “Floresta Faz a Diferença” (#florestafazadiferenca), encabeçada pelo Comitê Brasil em Defesa das Florestas e do Desenvolvimento Sustentável, uma coalizão formada por mais de 200 organizações da sociedade civil. Com a participação do cineasta Fernando Meirelles, a campanha colocou celebridades como Wagner Moura, Gisele Bündchen, Alice Braga e Rodrigo Santoro para alertar as pessoas, por meio de vídeos e fotos, sobre os prejuízos que o projeto poderia trazer ao país. Foi o primeiro passo para popularizar o tema, até então restrito a políticos, ambientalistas e outros ativistas. Após intensa pressão social, a presidente Dilma Rousseff vetou 12 itens e fez 32 alterações em trechos que promoviam o desmatamento no novo Código Florestal. O Executivo federal, mesmo depois dos vetos, teve que negociar com o Congresso, e a lei foi promulgada com “apenas” nove vetos.
Esse exemplo ilustra bem o fato de que, no atual modelo de presidencialismo de coalisão, a força econômica e o caráter suprapartidário da bancada ruralista permitem que esta exerça forte pressão sobre importantes setores da sociedade (outros segmentos do setor privado, a imprensa, o próprio Legislativo), com destaque para o Executivo federal, cujo resultado é o de ter de fazer concessões para aprovar projetos. Como vimos acima, o interesse defendido pelos parlamentares da bancada ruralista coincide com o interesse privado dos financiadores de suas campanhas, e não com o interesse público. Nesse sentido, o fim do financiamento privado de campanhas eleitorais, ensejado pelo STF, tem o potencial de ajudar a equilibrar o jogo político no Brasil.
Anexo 1
Itens | Código Florestal atual (Lei 4.771/65) |
Texto do novo Código Florestal aprovado pela Câmara |
Áreas de Preservação Permanente (APPs) | Vegetação nativa de margens de rios, lagos e nascentes, tendo como parâmetro o período de cheia. Várzeas e mangues; matas de restinga; encostas; topos dos morros; e áreas com altitude superior a 1800 metros. A vegetação nativa obrigatória nas margens de rios e outros cursos d’água: 30m para matas ciliares em rios de até 10m de largura; 50m nas margens de rios entre 10 e 50m de largura, e ao redor de nascentes de qualquer dimensão; 100m nas margens de rios entre 50 e 200m de largura; 200m para rios entre 200 e 600m de largura; 500m nas margens de rios com largura superior a 600m; 100m nas bordas de chapadas. Exige autorização do Executivo federal para supressão de vegetação nativa em APP e para situações onde for necessária a execução de obras, planos, atividades ou projetos de utilidade pública ou interesse social. |
Vegetação nativa de margens de rios, lagos e nascentes, tendo como parâmetro o nível regular da água. Várzeas, mangues e matas de encostas, topos dos morros e áreas com altitude superior a 1800 metros podem ser utilizadas para determinadas atividades econômicas, agrossilvopastoris. A planície pantaneira passa a ser área de “uso restrito”, aberta a atividades econômicas específicas. A vegetação nativa obrigatória nas margens de rios e outros cursos d’água: 30m para matas ciliares em rios de até 10m de largura – quando houver área consolidada em APP de rio de até 10m de largura, reduz-se a largura mínima da mata para 15m; 50m nas margens de rios entre 10 e 50m de largura, e ao redor de nascentes de qualquer dimensão; 100m nas margens de rios entre 50 e 200m de largura; 200m para rios entre 200 e 600m de largura; 500m nas margens de rios com largura superior a 600m; 100m nas bordas de chapadas. Permite a supressão de vegetação em APPs e atividades consolidadas até 2008, desde que por utilidade pública, interesse social ou de baixo impacto ambiental, incluindo atividades agrossilvopastoris, ecoturismo e turismo rural; Outras atividades em APPs poderão ser permitidas pelos estados, por meio de Programas de Regularização Ambiental (PRA), se não estiverem em áreas de risco. A supressão de vegetação nativa de nascentes, de dunas e restingas somente poderá se dar em caso de utilidade pública. |
Reserva Legal | Na Amazônia Legal: 80% em área de florestas e 35% em área de cerrado. Demais regiões e biomas do país: 20%. Cálculo da Reserva Legal excetua APPs. Para o registro de Reserva Legal, a averbação se dá na inscrição de matrícula do imóvel rural no cartório de imóveis competente. |
Na Amazônia Legal: 80% em área de florestas, 35% em área de cerrado e 20% em campos gerais. Demais regiões e biomas do país: 20%. Cálculo da Reserva Legal admite soma com APP, desde que esteja preservada ou em recomposição e não implique em mais desmatamento. Imóveis rurais de até quatro módulos fiscais são desobrigados de recompor a RL, podendo limitá-la à vegetação remanescente em 22 de julho de 2008. Exploração econômica permitida, desde que a propriedade esteja no Cadastro Ambiental Rural e que o Sisnama autoriza a atividade. Fim à exigência de averbação da RL em cartório. A RL, porém, deverá ser registrada no Cadastro Ambiental Rural. |
Áreas rurais consolidadas | Não contempla conceito de área consolidada. Recomposição, regeneração e compensação são obrigatórias. |
Estabelece o conceito de área consolidada. •Imóveis de até quatro módulos fiscais não precisam recompor a vegetação nativa. Quem desmatou antes de a reserva legal ter percentual aumentado (a partir de 2000) não precisa recompor além do exigido na época. |
Competência para emitir licença para desmatamento | Para área da União ou empreendimento com o impacto regional ou nacional, a competência é do Ibama. No caso de área de estados, órgão estadual do Sisnama. No caso de área municipal |
Órgão federal concederá licenças no caso de florestas públicas ou unidades de conservação criadas pela União ou de empreendimentos que causem impacto nacional ou regional ao meio ambiente. No caso de área do Estado, órgão estadual integrante do Sisnama. Órgão municipal concederá licenças no caso de florestas públicas ou unidades de conservação criadas pelo município e por um consórcio de municípios. |
PUNIÇÃO | Pena de três meses a um ano de prisão simples e multa de 1 a 100 vezes o salário mínimo. Decreto 7029/09 prevê sanções para o produtor que naco tiver reserva legal averbada no registro de imóveis até 11 de junho de 2011. |
Isenta os proprietários rurais das multas e demais sanções previstas na lei em vigor por utilização irregular, até 22 de julho de 2008, de áreas protegidas. Produtor que se inscrever no Cadastro Ambiental Rural e aderir a programa de regularização fundiária terá suspensas sanções administrativas. |
Fonte: Agência Senado, Jornal do Senado.