Ao longo do século 20 a comunicação passou por duas grandes revoluções. A primeira delas envolveu a captação de som e imagens para sua posterior exibição (o que deu origem ao cinema) e a transmissão desses conteúdos em longas distâncias, através de cabos ou do espectro eletromagnético (o que deu origem ao rádio, à TV aberta e por fim à TV paga). Mas, em todos esses casos, manteve-se o paradigma surgido com a escrita, no qual um centro ativo irradia a informação para vários pontos passivos, que só têm a opção de consumi-la ou não. Foi a segunda grande revolução do século 20 que mudou esse cenário, com a construção de redes interativas, onde todos podem ao mesmo tempo produzir e consumir informações. Um conjunto de inúmeras dessas redes interconectadas entre si ficou conhecido como Internet e passou a ser o paradigma das comunicações no século 21. Ao processo de alargamento do conceito de interatividade para os demais meios de comunicação damos o nome de convergência, que apresenta um conjunto de aspectos industriais, tecnológicos, culturais, sociais, econômicos e políticos.
Neste novo cenário das comunicações, dada a sua natureza digital1, a fronteira entre a infraestrutura de transmissão e o conteúdo transmitido vai se tornando mais tênue. Esse fenômeno tecnológico acaba tendo consequências na conformação dos atores econômicos que atuam no setor. Assim, é cada vez mais comum encontrarmos empresas que atuam nos dois lados do processo de comunicação, quer tais empresas tenham surgido como operadoras de telecomunicações2 ou como produtoras/programadoras de conteúdo3.
O presente texto, contudo, tentará produzir um recorte e se concentrar nos aspectos relacionados apenas ao conteúdo dos meios de comunicação, centrando-se nos grupos de mídia mais tradicionais, mas abordando aspectos da TV paga que interessem à caracterização mais ampla da produção de conteúdo nesse setor.
Um dos aspectos marcantes da comunicação no Brasil é a barafunda de leis, decretos, portarias e normas que buscam regular o setor. São instrumentos legais de momentos históricos bem distintos, com diferentes graus de incidência legal e que muitas vezes se contradizem. O rádio e a TV aberta no Brasil (reunidos sob a expressão “radiodifusão”) são regulados principalmente pelo Código Brasileiro de Telecomunicações (CBT, de 1962). Na sua origem, esta era uma legislação que tratava também das telecomunicações.4 A aprovação do CBT motivou a criação da Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (Abert), aquela que foi, durante muitos anos, a única representante das empresas de radiodifusão.5 Como fruto do lobby da Abert, o CBT estabelece um grau mínimo de obrigações às emissoras outorgadas se comparado à legislação de outras democracias mais consolidadas.6 E nenhuma dessas obrigações têm de fato como objetivo garantir meios plurais e diversos.
Posteriormente, a radiodifusão sofreu quatro importantes inovações legais. Em 1967, o Decreto-Lei 236 introduziu a censura prévia7 e a limitação de emissoras para cada outorgado8. A Constituição Federal de 1988 determinou que a outorga e renovação de licenças para rádio e TV dependem de manifestação do Poder Executivo e do Poder Legislativo.9 Já a Emenda Constitucional n° 8 separou a radiodifusão das telecomunicações, fazendo com que a nascente Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) não tivesse poder regulatório sobre a radiodifusão, que permaneceu sob a regulação do Ministério das Comunicações. Por fim, a Emenda Constitucional n° 36 permitiu que as outorgas pudessem ser controladas por pessoas jurídicas, com até 49% de seu capital em mãos de estrangeiros, sendo que o controle editorial (sic) deve ser executado por brasileiros natos ou naturalizados há mais de 10 anos.10
Cerca de 96% das residências brasileiras captam o sinal de emissoras de TV aberta, quer sejam as cabeças de rede ou suas afiliadas. No entanto, milhões de brasileiros, especialmente aqueles que residem no meio rural, necessitam usar enormes parabólicas para captar o sinal diretamente dos satélites, em um expediente à margem da lei, mas largamente tolerado pelo governo e os próprios radiodifusores.
Já a TV paga (independente do meio utilizado para sua transmissão) é tratada na Lei 12.485/2011, que deixou seus aspectos de conteúdo sob a regulação da Agência Nacional de Cinema. À Ancine cabe regular as empresas que operam como produtoras audiovisuais, como programadoras11 e como empacotadoras12. No caso da TV paga, não há limite para a participação do capital estrangeiro, mas existem barreiras que impedem que operadoras de telecomunicações exerçam o controle sobre produtoras e programadoras em uma das raras cláusulas anticoncentração de nossa legislação.
Após anos de estagnação, o número de assinantes passou a crescer vigorosamente entre 2004 e 2014, alcançando 19.992.801 assinantes, segundo a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), o que corresponde a pouco mais dos 63,3 milhões de domicílios brasileiros, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Porém, a crise econômica fez o setor sofrer sua primeira redução em anos. No final de 2015, o número de assinantes caíra para aproximadamente 19.170.000.
Durante muitos anos, era comum ouvirmos que a comunicação no Brasil é controlada por poucos grupos empresariais de caráter familiar. Porém, o século 21 viu o Grupo Globo abrir tamanha dianteira das demais empresas brasileiras do setor (muitas em crise financeira)14 que já não é mais possível colocá-las todas no mesmo conjunto. Dados dos balanços de 2012,15 por exemplo, revelam que a receita líquida da Globo é, pelo menos, três vezes maior do que a receita líquida somada dos grupos Abril, RBS, O Estado de São Paulo e SBT. Já o seu lucro líquido é mais de 11 vezes maior do que o lucro líquido dessas outras empresas reunidas. Apenas a divisão de TV paga da Globo (Globosat) já é maior do que qualquer outro grupo de comunicação no Brasil.
Em paralelo à vertiginosa ascensão do Grupo Globo, assistimos a uma crise aguda de vários de seus concorrentes de capital nacional, como a Abril16 (durante anos disputando com a Globo o mercado editorial e o de TV paga), que hoje possui uma dívida muitas vezes superior ao seu patrimônio líquido. Além do endividamento, esses grupos se mostraram incapazes de operar em um cenário de convergência, ficaram restritos a poucas mídias, como jornais (O Estado de São Paulo e Folha de São Paulo) e TV aberta (SBT, Record e Rede TV) e não conseguem explorar as sinergias inerentes à convergência.
Hoje, então, é possível dizer que um único grupo nacional controla mais da metade do mercado de comunicação no Brasil, em um grau de concentração que encontra poucos similares em outros países. No entanto, para entendermos melhor o mercado brasileiro de comunicação falta descrever dois conjuntos de atores econômicos.
O primeiro conjunto é constituído por grupos religiosos, notadamente católicos carismáticos e evangélicos pentecostais. No Brasil, a legislação do setor não prevê restrições para o uso de TVs (inclusive na TV aberta, que opera através de concessão pública) para fins de proselitismo religioso.17 Com isso, um movimento que se iniciou no final dos anos 70 do século passado (através do rádio) acabou se alastrando e chegando à TV aberta. Hoje temos emissoras católicas (Rede Vida, TV Século XXI e Rede Canção Nova), além de igrejas pentecostais comprando horários específicos18 ou mesmo arrendando toda a grade19 de emissoras de TV. E, por fim, a Igreja Universal do Reino de Deus (IURD) como proprietária da Record, emissora que disputa com o SBT a vice-liderança da audiência da TV aberta.
O segundo conjunto é formado pelos grandes grupos estrangeiros que, por sua vez, podem ser divididos em dois tipos distintos.20
De um lado, os “grupos tradicionais” formados a partir de grandes estúdios de Hollywood que acabaram por crescer em direção a outras mídias. São conglomerados como Disney21, Time-Warner22, Viacom23, Universal, Columbia24 e Fox. Estes grupos controlam a distribuição no mercado cinematográfico brasileiro25 e, somados à Globo, o mercado de TV paga26.
Neste mercado, a hegemonia do principal ator brasileiro (a Globo) conseguiu produzir um tipo de aliança inédita em qualquer outro país do mundo. Os canais Telecine são uma parceria da Globo com cinco (Disney, Fox, Universal, Paramount e MGM) dos sete grandes estúdios norte-americanos para a veiculação de filmes, especialmente como lançamento na TV paga. Em nenhum outro país do mundo, cinco estúdios se uniram sob uma mesma bandeira. Se levarmos em consideração que os outros dois estúdios (Warner e Columbia) estão unidos sob a marca da HBO, não sobra espaço para nenhum outro agente nacional que buscasse fortes parcerias no mercado internacional. Já nos esportes em geral e no futebol em particular, até mais atrativos à audiência do que os lançamentos cinematográficos, os direitos de transmissão de competições internacionais estão razoavelmente pulverizados entre diferentes atores, como Globo (SporTV), Disney (ESPN), Fox (Fox Sports) e Warner (Esporte Interativo). Nas últimas décadas, os grandes grupos de mídia passaram a pagar bilhões de dólares para adquirir direitos exclusivos de transmissão. Entretanto, as competições nacionais de futebol seguem concentradas na Globo.27
De outro lado dos grupos estrangeiros, temos aqueles que passaram a atuar a partir do processo de convergência, em especial através de serviços de vídeo por demanda (VoD) na Internet. No Brasil, pelo menos três desses grupos já possuem forte atuação local,28 mas é de se esperar que outros cheguem em breve.29 Com o aumento da penetração da banda larga, os serviços de VoD devem crescer bastante nos próximos anos, roubando audiência tanto da TV aberta (liderada com folga pela Globo) quanto da TV paga, ampliando a presença de tais grupos estrangeiros.
Em resumo, é possível dizer que o mercado audiovisual brasileiro é disputado pela Globo e pelos grandes grupos transnacionais, com outros grupos brasileiros operando em nichos, notadamente aquele de perfil religioso.
Para analisar o grau de financeirização do mercado brasileiro de comunicações (descontadas as telecomunicações) é preciso proceder a um corte radical que separe aqueles de capital nacional dos estrangeiros. O modelo de governança dos atores brasileiros é fortemente familiar,30 não havendo nenhuma empresa com capital aberto. Embora haja um baixíssimo grau de transparência de tais grupos econômicos, até onde se sabe apenas a RedeTV teve, durante um período (encerrado em 2005), uma participação acionária não controladora de um agente financeiro (Banco Rural). Não há investimentos de fundos de pensão ou de venture capital em empresas brasileiras de comunicação.
Também é baixa a sinergia com outros setores econômicos. Os grupos O Estado de São Paulo e Abril possuem apenas investimentos no setor de transporte de cargas, como herança direta das suas atuações na logística do mercado editorial. A RBS possui uma ainda tímida operação no segmento de comércio eletrônico, em geral como investidora financeira.31 A Folha de São Paulo é controladora de uma bem-sucedida experiência no segmento de Internet: o UOL. Já Bandeirantes e RedeTV operam apenas no setor de comunicação.
A Record é de todas a mais sui generis na medida em que sua controladora é uma igreja. Já o SBT pertence ao Grupo Silvio Santos que, depois de quase ir à bancarrota por conta de sua operação no mercado financeiro (através do Banco Panamericano), atua no setor hoteleiro (Hotel Jequitimar), de cosméticos (Jequiti) e de loterias (Liderança Capitalização).
Nos anos 90, a Globo empreendeu uma forte tentativa de diversificar suas operações. Naquele momento a empresa familiar já contava com uma financeira (Roma), fazendas de gado, investimento no setor alimentar (Imbasa) e na construção e administração de shopping centers32 (São Marcos). Mas, foi com a percepção das sinergias com o processo de convergência que a empresa da família Marinho passou a ter operações de TV a cabo (NET), satélite (Sky), de telefonia celular (Maxitel), de pager (Teletrim), de equipamentos eletrônicos (NEC do Brasil), de telecomunicações (Vicom) e de comércio eletrônico (Shoptime). O resultado foi um fortíssimo endividamento que quase levou a empresa à concordata. Após intensa reestruturação, a Globo se desfez de todos os seus ativos que não estivessem ligados diretamente ao seu negócio principal, a produção de conteúdo.33
Já os grupos estrangeiros apresentam realidade totalmente distinta. São empresas de capital aberto, muitas vezes sem um controlador definido,34 com forte participação de agentes financeiros e sinergia com outros setores econômicos.35 Vejamos a situação dos dois maiores.
Os cinco principais acionistas da Disney controlam apenas 27% de seu capital e são todos oriundos do mercado financeiro, com investimentos tão distintos quanto Wells Fargo, General Eletric, Pfizer, Exxon-Mobil e Coca-Cola.36 Em seu board constam diversos profissionais que ainda hoje mantêm relação com o setor financeiro.37 Situação quase idêntica ocorre com a Time-Warner, com os cinco maiores acionistas possuindo apenas 28% de seu capital, sendo todos oriundos do mercado financeiro.38 E também seu board é composto por profissionais com passagens no mundo das finanças.39 A situação chega ao ponto em que um mesmo investidor (o fundo Vanguard,40 que administra cerca de US$ 3 trilhões) é, ao mesmo tempo, um dos cinco maiores acionistas das duas concorrentes.
As relações entre mídia e poder político são profundamente imbricadas. Se durante o século 19 e boa parte da primeira metade do século 20 predominou uma relação de interdependência que, por vezes, deu prevalência ao Estado, a formação dos grandes conglomerados empresariais midiáticos e sua crescente centralidade, já incluindo a televisão, instalaram um equilíbrio precário na relação de poder com o Estado, que tem, nas últimas décadas, pendido consideravelmente para o lado da mídia.41
No que se refere aos meios de comunicação de massa, a influência desse setor econômico sobre o poder político se dá por meio de mecanismos bastante sui generis se comparados a outros setores. O financiamento de campanhas eleitorais, por exemplo, não é ponto-chave para compreendermos essa dinâmica.42
Tendo como foco os grupos nacionais discutidos no primeiro item, tal influência se estabelece principalmente a partir de três mecanismos: (I) mistura entre classe política e grupos de mídia; (II) relações de proximidade e cobertura favorável; e (III) oposição midiática. Vamos a cada um deles.
O ponto de partida para a compreensão da íntima relação entre poder político e mídia é justamente a confusão proposital entre os dois, agravada com o advento da radiodifusão e a consequente prerrogativa do poder Executivo de delegar a prestação desses serviços. Diferentemente da publicação de um jornal, que independe de autorização do poder público, os serviços de rádio e de televisão são considerados serviços públicos e dependem da alocação de um canal no espectro eletromagnético.43
Até a Constituição Federal de 1988, não era sequer necessária a realização de licitação para a distribuição desses canais. Embora houvesse um procedimento seletivo estabelecido na legislação, o padrão era distribuí-los segundo critérios primordialmente políticos, partidários e até personalistas.44 Essa dinâmica faz parte do que se denominou de “coronelismo eletrônico”45 e que se reproduz até os dias de hoje, contribuindo à consolidação do poder de famílias como Sarney, Magalhães, Collor, Jereissati e Barbalho.
Há casos exemplares no poder Executivo, com José Sarney46 na Presidência da República de 1985 a 1990, e diferentes Ministros das Comunicações diretamente ligados ao setor, como Antônio Carlos Magalhães (1985-1990)47, Eunício Oliveira (2004-2005)48 e Hélio Costa (2005-2010)49. Contudo, é no poder Legislativo que essa prática mais chama a atenção, violando frontalmente o art. 54 da Constituição Federal, que restringe a relação de parlamentares com concessionárias de serviços públicos ou com empresas que gozem de favor decorrente de contrato com pessoa jurídica de direito público.
De acordo com levantamento realizado pelo Intervozes em 2015, que resultou em representações ao Ministério Público Federal e em ação constitucional protocolada no STF, ao menos 30 deputados e 8 senadores constam nominalmente nos registros oficiais como sócios de emissoras de rádio e de televisão.50 Estão entre eles Elcione e Jader Barbalho, José Sarney Filho, Fernando Collor de Mello, Felipe Catalão e José Agripino Maia, Aécio Neves, Edison Lobão e Tasso Jereissati. O levantamento não abarcou familiares ou “laranjas”, o que certamente elevaria o número de casos, mas dificultaria o questionamento legal. Vale citar, ainda, os parlamentares diretamente relacionados a grupos religiosos que arrendam parte da programação de emissoras de rádio e TV, especialmente os evangélicos. Embora não se enquadrem especificamente na proibição do art. 54 da Constituição, a preocupação de uso do cargo para influenciar decisões do Congresso em favor dos interesses do setor se aplica igualmente aqui.
O fato de o Poder Legislativo também fazer parte do processo de outorga e renovação de outorgas de rádio e televisão, por meio da Comissão de Ciência e Tecnologia das duas Casas Legislativas, torna o quadro ainda mais grave. É essa a principal comissão de mérito que aprecia os projetos de lei importantes para o setor. Pesquisa realizada com base nos Relatórios de Atividades de 2003 e 2004 divulgados pela CCTCI da Câmara identificou que mais de uma dezena de deputados sócios ou diretores de emissoras de radiodifusão são membros dessa comissão e denunciou casos específicos em que parlamentares participaram e votaram favoravelmente nas reuniões em que foram aprovadas as renovações de suas concessões.51 A ocupação dessa comissão estratégica por proprietários de emissoras em ambas as Casas se mantém atualmente.52
Ainda quanto à ocupação de espaços estratégicos no Congresso Nacional, interessa mencionar brevemente o Conselho de Comunicação Social (CCS). Sua existência está prevista no art. 224 da Constituição Federal, que o caracteriza como órgão auxiliar do Congresso. Embora determinado no texto constitucional desde 1988 e regulamentado em 1991, sua instauração só ocorreu em 2002, como resultado de acordo com a bancada do PT para a aprovação da Emenda Constitucional que permitiu a participação estrangeira nas empresas jornalísticas e de radiodifusão. Eleito em sessão conjunta das duas Casas do Congresso, o CCS emite pareceres sobre projetos de lei relacionados à comunicação social, podendo promover audiências públicas e estudos. Menos combativo e influente do que poderia ser, já contabiliza algumas gestões, das quais fizeram parte nomes relevantes dentro do grupo Globo, como Gilberto Carlos Leifert e Paulo Tonet Camargo.53 A definição da atual composição, que tomou posse em julho de 2015 após quase um ano sem funcionamento, foi repleta de polêmicas. Entre elas, a falta de quórum para a eleição dos membros e a escolha de dois ministros de Estado para ocupar as vagas da sociedade civil.54 Por certo, a existência de parlamentares radiodifusores contribui para as idas e vindas do Conselho, prejudicando o cumprimento de seu papel.
Ainda que tenhamos focado nos políticos concessionários de rádio e TV, é importante registrar que esses grupos de mídia atuam em diferentes áreas da comunicação, incluindo, com frequência, a imprensa escrita, por exemplo – um efeito da nossa parca legislação voltada ao controle de propriedade dos meios. Entretanto, para que a captura se estabeleça não é indispensável que os agentes públicos ou seus familiares sejam sócios ou diretores de meios de comunicação, havendo outros mecanismos efetivos para influenciá-los na defesa dos interesses do setor, que examinaremos a seguir.
A construção de carreiras públicas e políticas não pode abrir mão de boa exposição, e os meios de comunicação de massa são a melhor maneira de alcançá-la. As manchetes não são feitas ao acaso, nem naquilo que dizem, nem no que não dizem.55 Relações de proximidade entre os agentes públicos e os meios vão se estabelecendo no dia a dia das coberturas, que costumam dar mais destaque àqueles que falam o que se quer publicar e que concorrem para a produção das notícias que se quer veicular. Seja por oportunismo, seja por real comunhão de opiniões, caminhar ao lado desses meios se mostra mais frutífero do que enfrentá-los.
Essa relação de proximidade é cultivada também em encontros e eventos que promovem os diferentes agentes e as visões desses meios acerca do setor e da sua regulação. São comuns, por exemplo, sessões solenes nas Casas Legislativas para homenagear veículos de comunicação em seus aniversários, tendo ocorrido algumas vezes com a Globo em 2015.56 Em uma delas, Renan Calheiros, presidente do Senado, anunciou a realização, pela Casa, da primeira edição do Prêmio Jornalista Roberto Marinho de Mérito Jornalístico. Nesse mesmo ano, a FreCom (Frente Parlamentar de Comunicação)57, presidida pelo deputado Sandro Alex (PPS-PR), realizou a mostra audiovisual “Liberdade” na Câmara dos Deputados,58 feita em parceria com o Instituto Palavra Aberta e com o apoio da Associação Brasileira de Agências de Publicidade (Abap), Associação Brasileira das Emissoras de Rádio e Televisão (Abert), Associação Brasileira de Licenciamento (Abral) e Associação Nacional de Editores de Revistas (Aner).
Com exceção da Abral, as associações acima, em conjunto com a ANJ (Associação Nacional de Jornais), formam o grupo fundador do Instituto Palavra Aberta, parceiro na realização da mostra e cuja presidente, Patrícia Blanco, ocupa uma das vagas da sociedade civil no Conselho de Comunicação Social. Além dos associados fundadores, o instituto tem como associados efetivos o Google, as Organizações Globo e a Souza Cruz. A Editora Abril é associada colaboradora. O instituto se define como uma organização sem fins lucrativos, que defende a plena liberdade de ideias, pensamentos e opiniões e a autorregulamentação do setor. Tal concepção de “liberdade plena” se contrapõe à demanda por regulação e democratização dos meios de comunicação, que é apontada como um subterfúgio para a censura.59 O instituto conta com parcerias acadêmicas,60 desenvolve publicações e realiza eventos e ciclos de debates.
Entre esses eventos, organiza anualmente a Conferência Legislativa sobre Liberdade de Expressão, que conta com ampla cobertura dos meios. Em 2015, na sua 10ª edição, a conferência foi realizada no auditório da TV Câmara e teve entre seus convidados presidentes dos três poderes ou seus representantes (Eduardo Cunha, Michel Temer e Ricardo Lewandowski). Marcaram presença, ainda, os deputados federais do PPS Sandro Alex e Raul Jungmann, o secretário nacional de Justiça Beto Vasconcelos (responsável pela política da classificação indicativa) e o ministro do STF Marco Aurélio Mello. Pouco tempo depois, o ministro foi nomeado membro do Conselho Consultivo do Instituto Palavra Aberta, unindo-se ao também conselheiro Carlos Ayres Britto, ex-ministro do Supremo Tribunal Federal.61
Esses são alguns exemplos das maneiras pelas quais se aproximam veículos de comunicação e figuras públicas dos diferentes poderes, criando um ambiente de conciliação, em que os interesses do setor são naturalizados como valores associados à defesa aguerrida de direitos fundamentais, como a liberdade de expressão, a liberdade de imprensa e a livre iniciativa. Os reflexos da construção desse ambiente e dessa concepção, que se vale dos próprios meios de comunicação para repercutir e predominar, são vistos nos discursos de parlamentares, nas escusas de ocupantes de cargos relevantes no Executivo e nas decisões judiciais. Com relação ao Judiciário, é interessante observar algumas aproximações e presenças que se tornam mais recorrentes, como de Carlos Ayres Britto e, mais recentemente, da ministra Carmem Lúcia.62
Além do Instituto Palavra Aberta, outra entidade que merece citação é o Instituto Millenium. Embora tenha pessoas ligadas aos meios de comunicação entre seus fundadores e curadores, a presença dos grupos de mídia é mais marcante entre os seus mantenedores – câmara que conta com representantes do Grupo Globo, RBS e Abril. Ao contrário do Instituto Palavra Aberta, há uma diversidade maior nos setores contemplados na composição do Instituto Millenium, tendo uma base forte de economistas de tradição liberal, como Gustavo Franco e Armínio Fraga, e grandes empresários, destacando-se representantes da Gerdau e da Porto Seguro.63 Não inclui figuras do poder público entre seus membros, ainda que parte deles já tenha ocupado cargos de destaque em outros tempos, mas igualmente contribui para a configuração desse ambiente que favorece algumas ideias em detrimento de outras na opinião pública e por meio do qual são tecidas influentes relações.
Se as manchetes não são feitas ao acaso, nem naquilo que dizem, nem no que não dizem, é preciso ressaltar que tão ruim ou pior do que não aparecer na foto é aparecer mal – outro grande trunfo dos meios de comunicação de massa.64 É corrente o tratamento diferenciado de grupos e agentes políticos na cobertura dos veículos de massa, especialmente em momentos de maior tensionamento da conjuntura. Períodos eleitorais são particularmente interessantes neste sentido. Nas eleições de 2010, que resultaram no primeiro mandato de Dilma Rousseff, chamou a atenção uma declaração de Maria Judith Brito, presidente da ANJ e executiva do grupo Folha de São Paulo, de que, diante da fragilidade da oposição, o papel de fazer oposição ao governo estava sendo cumprido pelos meios de comunicação.65 As eleições anteriores, de 2006, também motivaram episódio digno de nota, quando se denunciou a compra pelo PT de dossiê que incriminaria o PSDB na aquisição fraudulenta de ambulâncias na época em que José Serra, candidato do PSDB a governador de São Paulo, era ministro da Saúde. As críticas à cobertura feita naquele momento culminaram na divulgação de abaixo-assinado do jornalismo da rede Globo em sua defesa e na demissão de jornalistas por não concordarem com a postura da emissora.66
O ano de 2015, pós-eleitoral, mas marcado pela instabilidade política e por discursos e movimentos pró-impeachment, também mostrou as facetas dos grandes meios diante de momentos conturbados – um jogo entre manter a institucionalidade a seu serviço ou apoiar sua ruptura após os devidos alinhamentos.67 Ainda que o que chamamos de “oposição midiática” se exacerbe no período eleitoral ou em momentos de instabilidade, ela está presente na cobertura política em geral, quando aborda programas de governo e políticas econômicas, dá mais atenção à corrupção de uns do que de outros, distorce manifestações populares e criminaliza movimentos sociais. A oposição não é só a governos, partidos ou a figuras políticas específicas, mas aos valores e ações dos quais discorda e que ameaçam seus interesses. Entre eles incluem-se, por certo, a regulação dos meios de comunicação e iniciativas no sentido de ampliar a pluralidade de vozes no setor.
Após a redemocratização do país, desde FHC há tentativas frustradas de criar um novo marco regulatório das comunicações. A nova lei geral que foi aprovada em 1997 (Lei n. 9.472/1997) para as telecomunicações, conferindo-lhe um novo marco legal e assentando as bases jurídicas para a privatização do Sistema Telebras, não teve correspondente no campo do rádio e da TV. Já no governo Lula, depois da derrota de novas iniciativas de regulação ainda em seu primeiro mandato, como a Ancinav68 e o Conselho Federal de Jornalismo69, Franklin Martins encabeçou a elaboração de anteprojeto de Lei Geral de Comunicação Eletrônica de Massa, com texto que nunca veio a público e que foi abandonado por Dilma Rousseff quando da troca de governo de 2010 para 2011 – mais uma vez resultado da pressão negativa da mídia. São raras as iniciativas que partiram do Executivo durante os governos do PT e que lograram algum resultado positivo concreto. A criação da Empresa Brasil de Comunicação70 é uma dessas poucas exceções, mas que ainda patina para se afirmar e definir seu projeto.
O tema da regulação dos meios de comunicação veio novamente à tona nas eleições presidenciais de 2014, em que Dilma Rousseff chegou a afirmar que em novo mandato trabalharia pela aprovação de regulação para combater a concentração dos meios de comunicação no Brasil. A oposição midiática foi ferrenha e o assunto novamente morreu após as eleições,71 especialmente no conturbado contexto político que se estabeleceu no país em 2015.
Além dos impactos regulatórios, os mecanismos de captura apresentam desdobramentos econômicos concretos em favor dos meios. Na história da comunicação brasileira há casos famosos em que o Estado aportou diretamente recursos públicos no funcionamento dos grandes grupos de mídia. Citemos os três casos de maior destaque.
Ao longo de todo o período da ditadura militar e também do governo Sarney, a Embratel (então uma estatal) promoveu uma espécie de subsídio cruzado no uso dos satélites brasileiros. Assim, os demais clientes (inclusive os residenciais que fizessem uso de ligações de longa distância) pagavam a mais em suas contas para que as cabeças de rede pudessem transmitir seu conteúdo para todas as afiliadas, em um momento no qual o uso de satélites ainda era um insumo inalcançável para boa parte das empresas, dado o seu custo.
Entre o final da década de 90 do século passado e o início dos anos 2000, o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) investiu cerca de R$ 1,6 bilhão na Globocabo (atual NET). A empresa chegou a ter sete anos sucessivos de prejuízos e precisava desesperadamente de recursos. Embora o banco não possuísse nenhuma linha de crédito para o setor de comunicações, a Globo recebeu vultosos investimentos, mesmo quando suas ações já apresentavam enormes quedas. Ao final, quando a NET foi sendo progressivamente vendida para a mexicana América Móvil, o BNDES reduziu sua participação até sair totalmente da empresa. O banco jamais revelou o tamanho do prejuízo da operação.
Já o terceiro caso se refere à quebra do Banco Panamericano, de propriedade de Silvio Santos, dono do SBT, que levou o governo a escalar a Caixa Econômica Federal para comprar 49% de suas ações, evitando uma falência que, por conta de compensações cruzadas, poderia terminar quebrando também a emissora de TV.
Outra forma de investimento do Estado que permite e até estimula a concentração econômica é o modelo de fomento através da renúncia fiscal. Dessa vez, o mecanismo inclui, também, os grandes grupos de mídia transnacionais. Trata-se da possibilidade do uso de recursos destinados inicialmente ao pagamento do imposto de renda e de uma taxa chamada Condecine Remessa72 para o fomento de obras audiovisuais brasileiras produzidas por empresas independentes.73 O problema é que, ao aportar tais recursos públicos, emissoras de TV, programadoras de TV paga e distribuidores de cinema (inclusive estrangeiros) adquirem uma série de direitos sobre tais obras audiovisuais.74 Não é raro que emissoras de TV, programadoras e distribuidoras terminem com mais receita do que as produtoras, embora só tenham investido recursos públicos de renúncia fiscal. Anualmente, o Estado brasileiro permite que cerca de R$ 250 milhões sejam utilizados nesses tipos de mecanismos de fomento.
Por fim, nenhuma ação do governo é mais direta nessa dinâmica do que a compra de espaço publicitário com verbas públicas. Ao final do governo FHC, em 2002, a Globo ficava com 49% de todo o investimento federal em publicidade. Ao longo dos governos do PT, esse percentual oscilou negativamente de 59% (2003) para 36% (2014). Mesmo assim, nos 12 primeiros anos de governos petistas, apenas a emissora de TV aberta da família Marinho recebeu R$ 6,2 bilhões do total de R$ 13,9 bilhões gastos pelo governo em publicidade. Bem atrás, a Record obteve R$ 2 bilhões, SBT R$ 1,6 bilhão e Bandeirantes R$ 1 bilhão.75 Ainda que os aportes estejam menos concentrados nos últimos anos, a verba publicitária segue sendo usada como elemento de concentração e aumento da distância que separa o ator hegemônico e os demais agentes desse mercado.
Os efeitos do cenário apresentado são graves e generalizados. Impactam o exercício da liberdade de expressão e do acesso à informação pelos cidadãos e diferentes grupos sociais. Comprometem o debate público e a construção de valores a partir de bases plurais e diversas, contribuindo para a disseminação de ideias e comportamentos que naturalizam a opressão e criminalizam a pobreza76 e os movimentos sociais77. Fragilizam nossa democracia ao enviesar ou interditar discussões, seja porque os veículos estão diretamente ligados a grupos políticos ou religiosos (ou ambos), seja porque os grupos de mídia têm suas próprias concepções do que deveria ser a política e a economia do país.
Nesse último caso, teríamos um cenário saudável se diferentes posições fossem externadas por meio de uma pluralidade de veículos de comunicação, existindo contraponto público e equilibrado nos debates nacionais e locais. Todavia, não é essa a nossa realidade e, embora a Internet se fortaleça como instrumento para esse contraponto, ainda temos grandes desafios na universalização da conexão à rede com qualidade.
As alternativas para ampliar essa pluralidade geralmente são minadas ou capturadas. É o caso da radiodifusão comunitária, cuja potência permitida é bem reduzida se comparada às rádios comerciais e que sofre com a burocracia para a formalização das autorizações.78 A demora nas outorgas se desdobra em fechamento e criminalização das rádios comunitárias. Porém, mesmo quando a autorização é obtida, o rigor da fiscalização costuma pesar mais sobre elas do que sobre as rádios comerciais, a não ser que algum interesse político atue para que o tratamento seja diferente. Outro exemplo é a digitalização da televisão aberta no Brasil, que poderia ter servido ao fracionamento maior do espectro eletromagnético para a criação de novos canais, mas que ao final se rendeu ao padrão tecnológico que privilegia a alta definição e aos interesses que se beneficiam da concentração.79
A combinação entre os diferentes mecanismos de captura leva à manutenção desse cenário de pífio controle da concentração de propriedade dos meios de comunicação e de normas e políticas igualmente insuficientes, ou mesmo contraditórias, no intento de promover maior diversidade no conteúdo dos principais meios de comunicação. O Poder Executivo até hoje não foi capaz de fazê-lo, enquanto no Legislativo os projetos de lei que tentam alguma mudança positiva dificilmente são bem-sucedidos.80 Ilustram bem essa problemática projetos que visam estabelecer limites à concentração de propriedade, como o PL 4026/2004, do deputado Cláudio Magrão (PPS-SP), ao qual foi apensado o PL 6667/2009, do deputado Ivan Valente (PSOL-SP),81 e o praticamente histórico projeto de lei de regionalização da produção na radiodifusão da deputada Jandira Feghali (PCdoB-RJ), arquivado no Senado mais de dez anos após a sua proposição.82
Nesse encontro de interesses entre políticos e radiodifusores não só a concentração de outorgas serve à preservação do poder, mas também à quase inexistente programação televisiva local. A formação de redes sem qualquer tipo de obrigação de conteúdo regional favorece as cabeças de rede, que praticamente dominam a programação de TV disseminada por todo o território brasileiro. Esse alcance nacional interessa também aos anunciantes das cabeças de rede que, ao pagarem por publicidade em seus intervalos comerciais ou dentro dos programas (com merchandising, por exemplo), atingem população que vai bem além dos municípios em que a emissora é diretamente concessionária.83 Essa enorme abrangência das redes de TV levou à concentração da verba publicitária brasileira na TV aberta, com sua participação oscilando nos últimos anos em torno de 60-65% do total do bolo publicitário. Mesmo com uma audiência declinante (embora não nas mesmas proporções de países com mercados mais dinâmicos), a TV aberta segue capturando uma quantidade desproporcional da verba publicitária.84
Os grupos locais também se beneficiam desse cenário, apropriando-se de vantagens econômicas na medida em que conseguem (às vezes com forte disputa com outros grupos políticos) assumir o papel de afiliadas das grandes redes nacionais. Assim, uma afiliação à Globo, por exemplo, pode render, tanto em audiência quanto em publicidade local, incrivelmente mais do que uma afiliação à Bandeirantes, por exemplo. Por isso, muitas vezes o processo de afiliação está relacionado ao status local de um determinado grupo político.85 Sem a afiliação, um grupo local teria que arcar com os custos de programação de uma emissora e concorrer com as afiliadas que recebem um pacote de programação já pronta e com marcas consagradas como Globo, SBT e Record. Embora em menor intensidade, este mecanismo também ocorre na formação das redes de rádio, a partir do franqueamento de marcas como Band News e CBN.
Assim como as manchetes, a regulação certamente não é feita ao acaso, seja naquilo que dispõe, seja naquilo que omite. Lógica idêntica se aplica à fiscalização, exemplo da apatia e da condescendência quando se trata da comunicação social.86 A perpetuação da violação de direitos não se dá à toa, mas motivada por intrincadas relações e com uma aura de legitimidade alimentada pelos seus próprios partícipes. Entre eles, e cumprindo papel-chave, estão os grandes meios de comunicação de massa. Como visto, as consequências são muitas e envolvem a manutenção de privilégios, o direcionamento questionável de recursos e incentivos públicos, a fragilização do debate democrático e a apropriação privada do que deveria estar voltado ao interesse da sociedade. Os afetados, portanto, somos todos nós.