O Brasil é hoje o quarto maior exportador de armas pequenas do mundo, em ranking liderado pelos Estados Unidos.1 A maior empresa brasileira do setor é a gaúcha Taurus, criada em 1939 como uma fábrica de ferramentas. Tornou-se a principal produtora de revólveres no mundo, com 700 mil armas moldadas – 75% das quais são exportadas – e faturamento próximo a R$ 800 milhões por ano. A empresa é controlada pela Companhia Brasileira de Cartuchos (CBC), que, por sua vez, é a maior fabricante de munição do país.
A indústria de armas é altamente dependente das verbas públicas, já que entre seus principais clientes estão as polícias federal e estaduais, além das guardas municipais. Para defender seus interesses, Taurus, CBC e outras 150 fabricantes menores integram a Associação Nacional da Indústria de Armas e Munições (Aniam)2 e a Associação Brasileira das Indústrias de Materiais de Defesa e Segurança (Abimde)[/note]Ver: http://www.abimde.org.br/.[/note], organização de classe responsável por defender os interesses setoriais.
Uma das principais pautas da Abimde é a concretização das diretrizes da Estratégia Nacional de Defesa3, formuladas pelo ministro extraordinário de Assuntos Estratégicos Mangabeira Ünger e promulgada em dezembro de 2008 pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva. O plano prevê a criação de um “regime jurídico, regulatório e tributário especial que protegerá as empresas privadas nacionais de material de defesa contra os riscos do imediatismo mercantil e assegurará continuidade nas compras públicas”.
Os fabricantes de armas pequenas também têm interesse em flexibilizar leis que imponham obstáculos à compra de armas por civis, o que torna o Legislativo uma importante arena de disputa – e capturas – para esse segmento, que se utiliza de mecanismos de lobby e financiamento de campanhas para defender seus interesses. O alvo principal do lobby legislativo tem sido o Estatuto do Desarmamento4, aprovado em 2003, que dificultou o acesso do cidadão às armas.
Em 2005, o país realizou um referendo nacional sobre a venda de armas e munições.5 Entre os eleitores, 67% votaram pela manutenção do comércio, ainda que com as restrições impostas pelo Estatuto do Desarmamento promulgado dois anos antes, e 36% optaram pela proibição. O resultado, que contrariou pesquisas de opinião realizadas em anos anteriores, foi atribuído à pesada campanha financiada pelos fabricantes de armas. Uma pesquisa divulgada pelo Ibope em setembro de 2003 indicava que 82% dos brasileiros apoiavam o desarmamento.
O Congresso Nacional foi um dos principais campos de batalha. Foram criadas duas frentes parlamentares, a “Frente Parlamentar por um Brasil sem Armas” e a “Frente Parlamentar pelo Direito à Legítima Defesa”. Na primeira, filiaram-se 14,3% do Congresso e na segunda, 23,6%. Segundo os dados oficiais do TSE, a campanha contra as armas arrecadou R$ 2.287.311, enquanto a campanha a favor superou o dobro daquele montante, R$ 5.726.491,95. Suas principais doadoras foram a Taurus e a CBC. Com mais dinheiro para a campanha, foi possível inverter o sentido da opinião pública.6
Em 2015, uma comissão especial da Câmara dos Deputados aprovou alterações no Estatuto: além de facilitar a compra, reduziu-se a idade mínima para a aquisição de armas de fogo de 25 para 21 anos.7 O texto ainda precisa passar pelo plenário e, se aprovado, depois segue para o Senado. Cinco deputados que atuaram na comissão, inclusive o seu presidente, o deputado federal Marcos Montes (PSD-MG), tiveram suas campanhas financiadas pela indústria de armas – eles fazem parte da chamada Bancada da Bala. Montes recebeu R$ 15 mil da Taurus em 2014, e R$ 15 mil da CBC, segundo informações do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). No total, a Taurus doou R$ 870 mil nas eleições de 2014. Já a CBC desembolsou mais de R$ 1 milhão. Também foram eleitos com a ajuda da indústria armamentista nacional Gonzaga Patriota (PSB-PE), Nelson Marchezan Junior (PSDB-RS), Pompeo de Mattos (PDT-RS) e Edio Lopes (PMDB-RR). Os parlamentares afirmaram que votaram por convicção, e não foram influenciados pelo dinheiro de campanha.8
Organizações da sociedade civil se movimentaram para barrar a proposta, tanto no plenário da Câmara quanto no Senado. Para o Instituto Sou da Paz, que atua na área de segurança pública, o Estatuto do Desarmamento reduziu o número de homicídios no Brasil e não deveria ser alterado. Segundo pesquisa da organização, o banco de dados do Sistema Único de Saúde (SUS) mostra que, antes de 2003, o número de mortes por armas de fogo no Brasil crescia 8% ao ano. Dez anos depois, esse avanço passou a apenas 0,2%. Com isso, a organização estima que 160 mil vidas foram poupadas.
O Instituto Sou da Paz defende ainda que impacto do estatuto poderia ser ainda maior se ele tivesse sido totalmente implementado.9 Um dos maiores gargalos é a integração dos dois sistemas de controle de armas no país, o Sistema Nacional de Armas (SINARM), da Polícia Federal, e o Sistema de Gerenciamento Militar de Armas (SIGMA), do Exército. Pelo Decreto 5.123/2014, que regulamentou o estatuto, a integração deveria ter ocorrido até julho de 2005, mas os dois bancos de dados permanecem separados e sem comunicação entre si. Alguns especialistas atribuem a divisão à histórica desconfiança mútua entre autoridades civis e militares.
Mais do que a ideia de que o país e o cidadão precisam de armas para se defender, a pauta do setor se legitima por meio de estratégias de marketing sofisticadas, que entrelaçam conceitos como soberania, segurança nacional e liberdade individual. O Movimento Viva Brasil10, por exemplo, apoiado pelas empresas do setor, é o nome de uma organização da sociedade civil formada por colecionadores de armas e praticantes de tiro desportivo. Por essa rede, são distribuídas cartilhas como a Mitos e Fatos11, que busca desvincular a indústria de armas da epidemia de homicídios no país, bem como a Turma Legal12, uma revista em quadrinhos que permite aos pais ensinarem aos filhos a usarem armas com segurança.
Além disso, a indústria é beneficiada pelo mecanismo da porta giratória, ou revolving door: não raro, oficiais responsáveis por setores de fiscalização se tornam consultores privados ao entrar para reserva. Um dos casos mais notórios é o do general Antônio Roberto Nogueira Terra, que em 2001 trocou a missão de vigiar e controlar as armas do país por um cargo bem remunerado como representante da empresa de armas. Terra, que foi durante seis anos o chefe da Diretoria de Fiscalização de Produtos Controlados (DFPC) do Exército, com a responsabilidade de controlar desde as exportações até a produção nacional, passou, ao entrar na reserva, a prestar “consultoria” para a Taurus, justamente a principal fabricante nacional. O conselho de administração da Taurus é, aliás, presidido pelo diplomata Jorio Dauster Magalhães e Silva.
A Organização Mundial da Saúde (OMS) estima que o Brasil é o país com o maior número de homicídios do mundo. Um relatório divulgado em 2014 aponta que, de cada 100 assassinatos no mundo, 13 são no Brasil. Com dados de 2012, a OMS afirma que 64 mil pessoas foram mortas no país naquele ano. Depois do Brasil apareceram Índia (52 mil), México (26 mil), Colômbia (20 mil), Rússia (18 mil) e EUA (17 mil).13
Segundo o Mapa da Violência de 2015, um dos principais bancos de dados do país sobre segurança pública, o uso disseminado de armas de fogo no Brasil atinge mortalmente dois grupos específicos: os pobres, que vivem em áreas periféricas, e a população negra. “Os setores e áreas mais abastadas, geralmente brancas, têm uma dupla segurança: a pública e a privada”, diz o estudo. Por outro lado, os “menos abastados, que vivem nas periferias”, têm de se contentar com “o mínimo de segurança que o Estado oferece”. Esse contexto favorece a instalação de grupos criminosos nas zonas periféricas, especialmente relacionados ao tráfico de drogas, onde muitos dos conflitos acabam resolvidos com violência.
Aliada a outros fatores, essa situação faz com que a população negra, de menor renda média e que habita regiões periféricas, torne-se a vítima mais comum de armas de fogo. De acordo com o Mapa, o número de pessoas brancas mortas à bala caiu 23% entre 2003 e 2012 – de 14,5 mortes por 100.000 habitantes para 11,8. Entretanto, a quantidade de vítimas negras aumentou 14,1% no mesmo período – de 24,9 para 28,5 por 100 mil habitantes. Apenas em 2012, morreram duas vezes e meia mais negros do que brancos.
Ainda que a epidemia de homicídios seja a conexão mais óbvia com a disseminação do uso de armas na sociedade, o mapa dos afetados é muito maior. Ele envolve, também, as pessoas cuja saúde psicológica é afetada por um roubo, ou ainda as famílias que são obrigadas a conviver em seus bairros com gangues armadas ou ainda operações policiais e militares.14 O medo de ser atingido por uma bala perdida em momentos de confronto impede as pessoas de saírem de casa e afeta suas rotinas.
Em 2010, a organização não governamental Viva Rio15 em parceria com a Secretaria Nacional de Segurança Pública, do Ministério da Justiça, apresentou um estudo apontando que oito em cada dez armas apreendidas com criminosos brasileiros foram fabricadas no Brasil. A maior parte das armas utilizadas pelo crime organizado é composta por revólveres (65%) e pistolas (15%), e não metralhadoras e fuzis contrabandeados ilegalmente via Paraguai como muitos costumam pensar.
Uma outra investigação do Instituto Sou da Paz englobando todas as armas apreendidas pela polícia em 2011 e 2012 (mais de 14.000) revelou que a maioria das que foram usadas em crimes violentos eram armas curtas feitas no Brasil. Quase 60% de todas elas eram revólveres, e 32% eram pistolas; 78% haviam sido produzidas no Brasil – quase inteiramente pela empresa Taurus.16
De acordo com o delegado da Polícia Federal Marcus Vinicius da Silva Dantas, que já ocupou a Divisão de Repressão ao Tráfico Ilícito de Armas (DARM), não são traficantes internacionais os responsáveis por abastecer os criminosos brasileiros. “A maioria são armas antigas que acabaram na clandestinidade. Muitas compradas por ‘cidadãos de bem’ que venderam para conhecidos, que venderam para desconhecidos. É assim que ela chega ao criminoso”, explica.17
Para o delegado, ao dificultar a compra e limitar o porte de armas no Brasil, o Estatuto do Desarmamento atingiu indiretamente o crime organizado. “O Estatuto ajuda muito. A ideia de que o ‘cidadão de bem’ foi prejudicado e a vida do bandido melhorou é falsa”, diz o delegado.
Enquanto as estatísticas mostram que o Estatuto deu resultados e salvou milhares de vidas, o lobby da indústria mostra suas armas. A facilitação do acesso às armas pode voltar à pauta legislativa em um futuro próximo, impulsionada agora por mais um argumento: a necessidade de ampliar empregos e exportar mais como resposta à crise econômica.
Além de ser o maior fabricante de armas pequenas do mundo, o Brasil tem tradição na indústria de aviões, blindados e bombas. Armamentos “Made in Brazil” são usados em guerras em todo o mundo. A Colômbia, por exemplo, usa aviões Super Tucano, da Embraer, na repressão à guerrilha das FARC,18 e há denúncias de que a Arábia Saudita usou bombas brasileiras no Iêmen.19
Uma das principais pautas das associações mantidas pelo setor – Abimde e Anian – é a concretização da Estratégia Nacional de Defesa, segundo a qual “o setor estatal de material de defesa terá por missão operar no teto tecnológico, desenvolvendo as tecnologias que as empresas privadas não possam alcançar ou obter, a curto ou médio prazo, de maneira rentável”. Além disso, o plano defende que “a indústria nacional de material de defesa [deverá ser] incentivada a competir em mercados externos para aumentar a sua escala de produção”.
Representantes do setor marcam sempre presença nos encontros da Comissão de Segurança Pública da Câmara dos Deputados. Em 2012, Salésio Nuhs, diretor comercial e de relações institucionais da CBC e presidente da Aniam, participou de uma audiência pública e defendeu a revisão do Estatuto do Desarmamento.20 No mesmo ano, deputados da Comissão de Segurança Pública e Combate ao Crime Organizado da Câmara visitaram a Companhia Brasileira de Cartuchos (CBC), em Ribeirão Pires (SP).
Na ocasião, o então presidente da comissão, deputado Efraim Filho (DEM-PB), disse que a visita permitiu agregar ao papel dos deputados, de formular políticas públicas de segurança, conceitos de tecnologia e de modernidade desenvolvidos no Brasil. “É importante ter o conhecimento das tecnologias que a indústria já dispõe para serem utilizadas pelas forças públicas de segurança”, comentou Efraim. Em 2013, Carlos Afonso Pierantoni Gambôa defendeu, em palestra no Ministério da Defesa, a Estratégia Nacional de Defesa como um marco indutor para o desenvolvimento setorial.21
Essa estratégia de aproximação do setor público pela indústria tem rendido resultados, em especial através dos elevados gastos do Estado brasileiro com armamentos, empréstimos subsidiados e benefícios fiscais para as empresas. Desde 2011, o setor conta com diversos incentivos tributários, como isenções de pagamento de Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social (Cofins), Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) e PIS/Pasep.22 O Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) é tradicionalmente um fornecedor de capital subsidiado ao setor, em especial para a Taurus. Em 2013, a empresa recebeu R$ 32 milhões da instituição financeira.23
Com todos esses incentivos à sua indústria de armas, o balanço anual do Instituto Internacional para Estudos Estratégicos (IISS, por suas siglas em inglês) estima que o país tenha desembolsado US$ 31,9 bilhões para se equipar em 2014, o que o instala na 11ª posição mundial, com gastos maiores do que o de nações como Itália e Israel.24
Destaque recente ocorreu em 2015, quando Brasil e Suécia chegaram a um acordo para a assinatura do contrato financeiro que garantirá a compra de 36 aviões de caça Gripen NG da empresa sueca Saab. O Ministério da Defesa brasileiro havia anunciado a compra em 2013, mas faltava assinar esse documento. A primeira aeronave deverá ser entregue para a Força Aérea Brasileira (FAB) em 2019, e a última, em 2024. A venda dos aviões militares Gripen de nova geração foi acordada com a Saab por US$ 5,4 bilhões, o que pode elevar ainda mais os gastos militares brasileiros nos próximos anos.
A Embraer está entre as empresas brasileiras envolvidas no projeto. A companhia já assinou acordo com a Saab para coordenar as atividades de produção do avião a serem feitas dentro do território nacional. Além disso, participará do desenvolvimento de sistemas, integração, testes em voo, montagem final e entregas. É mais um impulso para o setor de defesa da Embraer, que já reponde por 20% de seu faturamento. Interessante notar que o conselho de administração da empresa conta com militares, como o brigadeiro Antonio Franciscangelis Neto.
Outros programas oficiais para reequipar as Forças Armadas brasileiras que incentivam a indústria de armamentos são o Prosub, focado no desenvolvimento do primeiro submarino nuclear em parceria com a França; o Sisgaaz, que cria um sistema de monitoramento das águas territoriais; o Sisfron, para supervisão das fronteiras; e o projeto de renovação da frota de blindados do Exército. Esse último já tem gerado benefícios à histórica companhia Avibrás, uma das primeiras indústrias de defesa aeroespaciais surgidas na região de São José dos Campos, em 1961. Ela chegou a entrar em recuperação judicial no final dos anos 2000, mas hoje registra lucros milionários. Se tudo sair do papel, os investimentos públicos na indústria de armas brasileira e estrangeira devem superar a casa dos R$ 190 bilhões até 2028.
Como se pode notar, a indústria de armamentos possui a peculiaridade de ter como seus principais clientes os governos das mais diversas instâncias. Por um lado, isso a torna amplamente suscetível ao rumo das políticas públicas e das estratégias nacionais e geopolíticas; por outro, incentiva os lobbies – e a captura – privados sobre os agentes do Estado. E também nessa indústria o fenômeno das portas giratórias fornece conexão entre interesses públicos e privados, com representantes circulando regularmente entre posições nas companhias, no poder Executivo e nas Forças Armadas.
No tema dos gastos bélicos, chamam a atenção os projetos de grande vulto, como a compra de jatos no exterior ou a pretensão de construir submarinos nucleares sob pretexto de proteger as reservas de pré-sal. Entretanto, é nas linhas de produção já estabelecidas que se encontra a base de sustentação dos fabricantes. São investimentos mais pulverizados em armas pequenas e, por isso, menos noticiados, mas que se multiplicam a partir de um sólido trabalho de pressão sobre o poder público.