Segundo dados de 2013 da Fundação João Pinheiro, o Brasil tem um déficit habitacional de 5,8 milhões de domicílios, fruto de uma urbanização acelerada e segregadora ocorrida no país, mais acentuadamente a partir da década de 1950, no contexto do processo de industrialização nacional. Desse momento até hoje, duas grandes políticas habitacionais foram implantadas no país: o Banco Nacional de Habitação, em 1964, e o programa Minha Casa Minha Vida, em 2009. Nesse meio tempo, algumas ações foram marcantes: no final da década de 1990, o setor imobiliário começou a ser reestruturado, com a criação do SFI (Sistema Financeiro Imobiliário). Em 2004, o governo federal alterou o marco regulatório para o setor, definindo uma série de incentivos à construção civil. Mas o programa Minha Casa Minha Vida é sem dúvida o ponto alto, figurando como o programa habitacional de maior escala já feito no Brasil.
A partir de meados da década de 2000, no contexto de reaquecimento do mercado imobiliário e posterior implantação do MCMV, as maiores empresas do setor começaram a abrir seu capital. Em sua maioria empresas familiares fundadas entre os anos de 1960 e 1980, elas buscaram recursos no mercado financeiro para ampliar seus negócios. A partir do IPO (Oferta Pública Inicial) da Cyrela, em 2005, outras 18 empresas fizeram ofertas de ações no Novo Mercado da Bolsa de Valores de São Paulo durante os anos seguintes. Hoje, entre as dez maiores companhias, sete têm o capital aberto na Bovespa1 :
Construtora | Área total construída (m²) | Total de obras | |
1 | MRV | 6.857.952 | 322 |
2 | DIRECIONAL | 5.519.013 | 63 |
3 | CYRELA | 3.119.873 | 98 |
4 | CASAALTA | 3.025.262 | 95 |
5 | GRUPO PACAEMBU | 2.198.725 | 48 |
6 | TOLEDO FERRARI | 2.009.287 | 29 |
7 | HF ENGENHARIA | 1.467.460 | 25 |
8 | CURY | 1.431.150 | 3 |
9 | ROSSI | 1.412.855 | 64 |
10 | BUENO NETTO | 1.357.726 | 21 |
A abertura de capital foi seguida por anos de crescimento do setor, a reboque da economia brasileira, sendo que os picos de lançamento de imóveis na cidade de São Paulo aconteceram em 2007, 2010 e 2011. Em 2012, o cenário de melhora foi interrompido, quando o ritmo dos lançamentos começou a diminuir.2 Posteriormente, a situação se agravou, e o ano de 2015 foi o pior para o setor desde a abertura de capital dessas empresas. Os lançamentos de novos imóveis caíram 19,3% em relação ao ano anterior, que já havia sido de retração3 , e as vendas diminuíram 15,1%.
Em meio a esse cenário, algumas poucas empresas do setor ainda conseguiram continuar crescendo. Entre as empresas negociadas na bolsa, somente uma teve um desempenho positivo, a incorporadora mineira MRV. Enquanto as incorporadoras perderam 21,4% do seu valor naquele ano, as ações da MRV tiveram alta de 25,56% no mesmo período.4
A partir do exemplo da MRV, este artigo visa mostrar como parte do setor imobiliário alavanca seu crescimento, neste período do programa Minha Casa Minha Vida, a partir da captura de recursos públicos até mesmo em um momento de crise, acarretando graves consequências à população mais pobre das cidades e à vida urbana.
A escala e o arranjo institucional do programa Minha Casa Minha Vida serviram como uma alavanca de propulsão para os negócios de empresas imobiliárias. Entre elas, destaca-se o caso da MRV. Essa empresa foi fundada em 1979 em Minas Gerais já com foco no mercado de habitação popular, mas o seu crescimento vertiginoso só aconteceu após a sua abertura de capital e a posterior criação do programa.
Há dez anos, a empresa ainda apresentava um desempenho modesto e atuava regionalmente. Em 2006, segundo ranking do ITC (Inteligência Empresarial da Construção), ela era a décima segunda maior do ramo no Brasil, com atividades em quatro estados.5 Já no ano seguinte ao lançamento do programa, em 2010, a MRV se tornou a empresa que mais construía no país, posto que mantém desde então.6 Hoje, é a líder no programa, com 6,5 bilhões de reais contratados em 519 projetos diferentes, o dobro da segunda colocada.7
Construtora | Contratos (em R$ milhões) | Média do valor dos
contratos (em R$ milhões) |
|
1 | MRV | 6553 | 519 |
2 | Direcional | 3900 | 50 |
3 | Emccamp | 2233 | 71 |
4 | Cury | 1900 | 60 |
5 | Sertenge | 1715 | 58 |
6 | Tenda | 1462 | 137 |
7 | Gráfico | 1073 | 28 |
8 | HF Engenharia | 934 | 28 |
9 | Emcasa | 860 | 26 |
10 | Canopus | 846 | 46 |
Praticamente todo o negócio da empresa está vinculado ao programa, destacadamente para as faixas 2 e 3, destinadas a famílias que recebem entre R$ 1,6 mil e R$ 5 mil mensais. Nestas faixas, são utilizados recursos do FGTS (Fundo de Garantia do Tempo de Serviço) para subsidiar parcialmente o financiamento da Caixa Econômica Federal. Com um valor máximo de financiamento maior, essas faixas possibilitam margens de lucro mais altas do que os empreendimentos da faixa 1 (para pessoas com renda mensal inferior a R$ 1,6 mil e onde se concentra a maior parte do déficit habitacional). De todos os seus projetos, segundo a companhia, 96% podem ser enquadrados nos financiamentos do Minha Casa Minha Vida e, com o lançamento da terceira fase do programa, ela chegará a um patamar estimado de 92% do seu banco de terras dentro do programa.8
Mas a empresa não foi só uma beneficiária do Minha Casa Minha Vida, foi antes uma idealizadora dele. A MRV foi uma das sete empreiteiras que participaram da elaboração do programa,9 em diversas reuniões com a então ministra-chefe da Casa Civil, Dilma Rousseff, e governadores, no fim de 2008 e início de 2009, em um processo quase sem participação da sociedade civil.
A pressão das empreiteiras enterrou o processo que estava em curso dentro do governo, de construção de uma política nacional de habitação que abordava o problema da moradia e das cidades de uma maneira mais holística e democrática. Essa política dava mais ênfase ao papel das administrações locais no programa, assim como à participação social na definição dos gastos dos recursos para a habitação. Tratava-se de propostas construídas historicamente por movimentos sociais ligados à Reforma Urbana e que vinham sendo gestadas pelo governo desde a criação do Ministério das Cidades em 2003. Porém, essas propostas foram solapadas pelo novo programa. 10
O programa vitorioso, o MCMV, nasceu como uma política anticíclica para estimular o mercado imobiliário e a economia brasileira, diante da crise mundial de 2008. Segundo os arquitetos Raquel Rolnik e Kazuo Nakano, a iniciativa de fomentar a produção de moradias após a crise parecia duplamente atraente. “Estimula-se a indústria, geram-se empregos e enfrenta-se uma questão candente na sociedade brasileira – a absoluta precariedade que caracteriza a moradia da maior parte da população –, combatendo a reprodução das favelas e periferias do país.”11
A escala do programa também não tinha precedentes. Segundo Caio Santo Amore, o Minha Casa Minha Vida representou uma grande ruptura em relação às práticas anteriores, “por trazer a questão da habitação para o centro da agenda governamental, pela escala de intervenção, pelo volume de recursos empregados, pelas concessões de subsídios (…) viabilizando o acesso à moradia para os setores de mais baixa renda, historicamente excluídos dos financiamentos para aquisição da casa própria.”12
Nesse processo, a MRV tem concentrado os recursos do Minha Casa Minha Vida, já que tem se favorecido de uma participação cada vez menor das concorrentes do setor no programa. Algumas grandes construtoras desistiram do MCMV buscando margens de lucros maiores em empreendimentos para setores de renda mais alta. O presidente da companhia, Rubens Menin, em declarações à imprensa, e os próprios informes da MRV afirmam que a concorrência nesse setor tem sido baixa, e que já foi muito maior.13 Das 27 empreiteiras da Associação Brasileira de Incorporadoras Imobiliárias (ABRAINC), somente sete estão no Minha Casa Minha Vida.
A empresa possuía, no final de 2015, um banco de terrenos com potencial de construção e lançamento de 220 mil unidades habitacionais, correspondendo a um Valor Geral de Vendas (VGV) de R$ 33,5 bilhões. Esse banco de terrenos cresceu em um ritmo ainda maior que o da empresa, tendo se multiplicado 25 vezes desde 2009. Como a terra urbanizada é um recurso finito, escasso e acaba sendo disputada por todas as faixas de renda no processo de produção das cidades, a concentração de terrenos com melhores qualidades nas mãos dessas empresas acaba restringindo as possibilidades de escolha de terrenos para a produção para a faixa 1, que é a mais numerosa e onde se concentra a maior parte do déficit habitacional. Além disso, aumenta a capacidade de a iniciativa privada elevar os preços dos terrenos, tornando até mesmo o poder público refém destes preços de mercado, como por exemplo, em casos de desapropriações.
A organização política dessas empresas é importante para compreender o alcance da sua atuação sobre o poder público. Diversas entidades, há décadas, organizam e representam os interesses corporativos do setor, buscando influenciar os poderes públicos em seu favor. São exemplos os SECOVIs (Sindicatos da Habitação) e os SINDUSCONs (Sindicatos da Indústria da Construção Civil), com uma incidência local e regional; a Câmara Brasileira da Indústria da Construção (CBIC); e, bem mais recentemente, a Associação Brasileira de Incorporadoras Imobiliárias (ABRAINC), em escala federal. A ABRAINC, fundada em 2013, reúne as 27 maiores empresas do setor no Brasil e foi fundada e é presidida por Rubens Menin, que também é fundador e presidente do Conselho de Administração da MRV. Devido a essa atividade, Menin tem acesso direto a governadores, senadores e à presidência.14
No último ano, Menin teve participação ativa na elaboração da nova fase do programa, o Minha Casa Minha Vida 3, em encontros constantes com congressistas e com a presidenta da República.15 Ele próprio explicou à Agência Estado que os ajustes do novo programa “estavam sendo feitos a quatro mãos, com empresas, bancos, associações e os ministérios,”16 sem citar nenhuma participação da sociedade civil.
A captura das políticas públicas de habitação pelo interesse econômico privado acarreta perdas à população urbana, beneficiada ou não pelo programa, sobretudo à mais pobre. Esta vai experimentar em seu cotidiano as consequências de um crescimento urbano espraiado, predatório e especulativo: vai ser “empurrada” pela alta dos aluguéis para locais mais distantes do trabalho, vai enfrentar maiores dificuldades de transporte público, maiores carências de infraestrutura e equipamentos sociais. Trata-se de uma disputa perdida entre um interesse de estabilidade e qualidades mínimas de vida urbana e os interesses comerciais e especulativos do mercado imobiliário.
Ademais, o arranjo institucional e produtivo do programa Minha Casa Minha Vida acabou esvaziando o papel das prefeituras nas políticas de moradia. Segundo o arquiteto Caio Santo Amore, as prefeituras se limitam a “aprovar os empreendimentos, flexibilizando suas legislações para adaptá-las ao modelo do programa e permitir a construção dos empreendimentos em localizações mais baratas, como por exemplo, antigas zonas rurais englobadas por alterações nos perímetros urbanos.
Segundo Santo Amore, são as empreiteiras, em sua relação com a Caixa Econômica Federal, que definem o projeto e a localização dos empreendimentos. “Tem prevalecido no programa um padrão de produção com fortíssima homogeneização das soluções de projeto arquitetônico e urbanístico e das técnicas construtivas, independentemente das características físicas dos terrenos ou das condições bioclimáticas locais.”17 Dessa forma, o programa tem agravado o problema histórico de segregação espacial nas cidades, reservando à população mais pobre invariavelmente as piores localizações: segundo Santo Amore, “mal servidas por transporte, infraestrutura ou ofertas de serviços urbanos adequados ao desenvolvimento econômico e humano.”
A arquiteta Beatriz Rufino destaca ainda que a criação de megaempreendimentos com mais de mil unidades define um desenho urbano de má qualidade, “(…) multiplicando sociabilidades restritas a grandes condomínios que oferecem como áreas coletivas espaços precários e pouco apropriados por seus moradores”.18 Alguns casos extremos revelam ainda a voracidade que o programa, baseado na oferta de recursos públicos à iniciativa privada, cria sobre as empresas desse mercado. Somente em obras da MRV, foram feitos cinco flagrantes de trabalho análogo ao escravo. Os casos envolveram tráfico de pessoas, servidão por dívida e condições de alojamento e alimentação degradantes.19
No último flagrante, na cidade de Macaé (RJ), em outubro de 2014, 108 funcionários da empresa foram libertados. Na ocasião, também foi caracterizado o tráfico de pessoas, já que parte das vítimas foi recrutada por engenheiros da empresa em Alagoas, Maranhão, Piauí e Sergipe.
A MRV chegou a ser incluída na “lista suja” do trabalho escravo, cadastro que era mantido pelo Governo Federal com as empresas que foram flagradas pelo crime. Com o nome na lista, a MRV teve seus contratos de financiamento suspensos pela Caixa Econômica Federal em 2013. Naquele ano, a empresa foi acionada pelo Ministério Público do Trabalho a pagar R$ 6,7 milhões de multa pelos casos de trabalho escravo. A decisão foi derrubada por liminares na Justiça, que impediram que a construtora continuasse na lista. As decisões judiciais foram criticadas pelo Ministério Público Federal, que recomendou que a empresa voltasse ao cadastro.20
Após a MRV pedir a retirada do seu nome da lista, a ABRAINC buscou acabar com todo o cadastro do Governo Federal. A entidade questionou a constitucionalidade da lista na Justiça, afirmando que ela deveria ser organizada por uma lei específica e não por uma portaria interministerial.21
O pedido da ABRAINC foi feito ao Supremo Tribunal Federal em 22 de dezembro de 2014. Cinco dias depois, em pleno recesso de Natal, o então presidente do Supremo Tribunal Federal, Ricardo Lewandowski, determinou a suspensão da lista e dos seus efeitos. A Advocacia-Geral da União e o Ministério Público do Trabalho recorreram da decisão do ministro, mas até hoje não houve uma decisão colegiada sobre o assunto.
As faixas 2 e 3 do programa, que abrigam as atividades mais lucrativas de empresas como a MRV, não são mantidas pelo Orçamento Geral da União, mas sim por recursos do FGTS (Fundo de Garantia do Tempo de Serviço). O fundo é constituído pela contribuição mensal de todos os trabalhadores com carteira assinada do país, ou seja, trata-se de uma parte da riqueza produzida socialmente reservada para uma finalidade previdenciária, e serve como uma garantia futura aos trabalhadores. Os recursos desse fundo são utilizados para financiamento habitacional, além de obras de infraestrutura e saneamento, e sua gestão é feita pelo chamado Conselho Curador do FGTS, composto por membros do governo, entidades sindicais dos trabalhadores e também patronais. O fundo não é público, pois o dinheiro que guarda é dos trabalhadores e pode ser sacado individualmente, segundo suas regras. Tampouco é totalmente privado, pois deve ser utilizado para finalidades específicas de promoção do desenvolvimento urbano. É o chamado fundo paraestatal. Diante disso, a questão que vem à tona nesse debate é: qual a finalidade que efetivamente este importante fundo está tendo?
A despeito dos avanços que o acesso à casa própria de fato pode representar na vida das camadas mais pobres da sociedade, os impactos globais ou “externalidades” do processo sobre a sociedade e as cidades não podem passar despercebidos. A pretexto de se “atacar o problema da moradia”, o que sem dúvida é do interesse geral da população mais pobre, afetada pela elevação dos aluguéis e pela moradia precária, os recursos deste fundo dos trabalhadores estão financiando e, por isso, impulsionando o processo de especulação imobiliária e expulsando estes mesmos trabalhadores para fora da cidade. Ou seja, resolve-se um problema do beneficiário, mas ele acaba ganhando outros.
Recursos que poderiam ser utilizados para a redução de desigualdades urbanas são transferidos para a iniciativa privada, para ações e obras que produzem novas vulnerabilidades sociais e urbanas e aprofundam as que já existiam. Podemos compreender esse processo como um conjunto de empresas imobiliárias capturando uma parte da riqueza socialmente produzida e “devolvendo como contrapartida” uma produção de habitações de baixa qualidade, quase sempre em áreas pouco urbanizadas, estruturadas em um arranjo institucional que enfraquece o poder local e as instâncias democráticas de decisão, onde a população poderia participar. Por fim, o Conselho Curador do FGTS chancela esse processo, privilegiando uma maior rentabilidade do fundo, em detrimento destas consequências urbanas descritas e, por vezes, como apontado, financiando inclusive a utilização de trabalho escravo.