São Paulo S.A. - retrato de um projeto privatizante de governo - CAPÍTULO 3 – Doa São Paulo

CAPÍTULO 3 – Doa São Paulo

Desde o início de sua gestão, João Doria tem anunciado a sua capacidade de obter doações de bens e serviços de empresas privadas como uma vantagem para a cidade de São Paulo. Segundo o prefeito, as doações permitem à cidade poupar gastos a “custo zero” e dão às empresas uma oportunidade de exercer sua “cidadania”1.

Hoje, segundo o decreto municipal 52.062, de 2010, as doações devem seguir os seguintes passos:

1. A empresa procura a Prefeitura ou secretaria pertinente e registra o interesse em doar um bem ou serviço ou realizar uma parceria.
2. O órgão municipal analisa a proposta do ponto de vista técnico e jurídico e verifica se há interesse da administração em receber aquele bem ou serviço.
3. Se houver interesse da Prefeitura em receber o serviço ou bem, ela anuncia a intenção de receber a doação no Diário Oficial e faz um chamamento público para que outras empresas interessadas em doar o mesmo item se manifestem.
4. O órgão público recebe as propostas e escolhe a mais vantajosa para a Prefeitura do ponto de vista do interesse público.
5. A doação deve ser registrada num “termo de doação”, e o órgão deve publicá-lo no Diário Oficial, contendo os detalhes da doação e os valores envolvidos.
6. Quando há exigência de contrapartida por parte da empresa doadora – ou seja, se há pedido para que a marca da doadora seja divulgada -, a empresa deve seguir normas que definem, por exemplo, o tamanho da placa, e respeitar a Lei Cidade Limpa. No caso de parcerias e convênios, os critérios são definidos de acordo com o decreto número 57.575/2016.2

Ao analisar as doações realizadas no primeiro ano da gestão Doria e o modo pela qual elas foram feitas, contudo, percebe-se que, além de muitas vezes onerarem a Prefeitura e trazerem vantagens às empresas doadoras, elas trazem consigo problemas de ordem formal e política. Do ponto de vista formal, as doações não só não se utilizam de mecanismos que garantam a impessoalidade da operação, tais como licitações, como deixam de respeitar os procedimentos legais adequados em diversos casos. Além disso, a forma pela qual foram feitas é pouco transparente, frequentemente até mesmo quanto ao objeto das doações. Do ponto de vista político, muitas delas parecem não ter sido feitas tendo o interesse público como prioridade – ou seja, não foram pautadas pelas necessidades da cidade e das(os) cidadãs(os) – e, às vezes, parecem ter sido guiadas pelos interesses das empresas. O que é ainda mais grave, em alguns casos, as doações subverteram princípios democráticos, permitindo a empresas doadoras ganhar ingerência em definições de diretrizes políticas municipais de seu próprio interesse.

Segundo o Portal da Transparência da Prefeitura de São Paulo, a cidade recebeu até o final de outubro de 2017 pouco mais de R$ 451 milhões em bens e serviços doados pela iniciativa privada. Nesse montante, incluem-se doações, cessões, comodatos e acordos de cooperação. A seguir, apresentaremos alguns dos principais problemas encontrados quando analisamos as maiores doações recebidas nesse período.3

 

3.1. As doações privilegiam algumas empresas em detrimento de outras

Pela Constituição federal (artigo 37), a administração pública, seja no nível federal, estadual ou municipal, deve obedecer aos princípios da “legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência”. Para tanto, entre outras exigências, as obras, serviços, compras e alienações devem ser “contratados mediante processo de licitação pública que assegure igualdade de condições a todos os concorrentes” (art. XXI). Apesar de as doações não envolverem pagamento por bens e serviços, ao menos não diretamente, a decisão de aceitar ou não determinada doação implica decisões políticas, oferece vantagens às empresas doadoras (ver itens 3.3, 3.5 e 3.7, abaixo, por exemplo) e, muitas vezes, traz ônus para a Prefeitura (ver item 3.4). Assim, também as doações deveriam ser objeto de licitação ou mecanismo equivalente que garantisse a impessoalidade – ou seja, que qualquer empresa tivesse a mesma oportunidade de oferecer determinado serviço ou bem -, para que o poder público pudesse avaliar e escolher qual empresa faria a doação, de acordo com o critério do interesse público.

O único mecanismo legal existente nesse sentido é o decreto municipal 52.062, de 2010, que obriga a Prefeitura a publicar um chamamento público no Diário Oficial divulgando a proposta de parceria recebida por empresa privada, para permitir que outras empresas interessadas em oferecer o mesmo bem ou serviço possam se manifestar. A lei, contudo, exige apenas que a Prefeitura esteja aberta a outras manifestações de interesse por três dias – um prazo muito curto. Só depois de passado esse período é que a parceria pode ser oficializada. A Prefeitura de São Paulo, entretanto, não respeitou nem mesmo essa legislação em pelo menos três casos, dois deles relativos a equipamentos do parque Ibirapuera. Em fevereiro, Doria anunciou parceria com a Cyrela para reforma dos banheiros do parque e, em março, com a Flora, empresa do grupo JBS, para reforma do viveiro Manequinho Lopes. Em ambos os casos, o anúncio foi feito antes da publicação do chamamento público4. O mesmo ocorreu com a doação de consultoria pela McKinsey para apoiar a Prefeitura na elaboração do Plano de Metas da cidade, que foi anunciada em dezembro de 2016, antes mesmo de Doria tomar posse (ver item 3.3 abaixo). O chamamento público foi publicado em fevereiro de 2017.

Tampouco há exigências e critérios de seleção considerando a qualidade das práticas (corporativas, produtivas, trabalhistas, ambientais) das empresas oferecendo doações, nem as relações que têm com a administração pública, nem mesmo relativas a dívidas e sonegação de impostos.

3.2. Pouca transparência

No início da gestão Doria, não havia publicações informando sobre todas as doações recebidas no Diário Oficial. Em fevereiro, foi anunciado que informações sobre as doações seriam publicadas no Portal da Transparência da Prefeitura, divulgando o nome dos doadores, os destinatários das doações e os valores doados. As informações disponibilizadas, porém, são genéricas e não incluem a memória de cálculo para se chegar ao valor declarado. Alguns valores listados também são questionáveis. A maior doação registrada, pela Cisco, no valor de R$ 300 milhões, por exemplo, não discrimina os itens recebidos e nem o valor de cada item. Ao ser questionada sobre a memória de cálculo do valor, a Secretaria Municipal de Desestatização e Parcerias respondeu que os equipamentos doados foram utilizados na realização dos Jogos Olímpicos e Paraolímpicos Rio 2016 e que, “por tratar-se de equipamento usado, não há tabela de referência no mercado local”. A mesma secretaria, na mesma resposta, afirma, porém, que, “se forem considerados valores de mercado para aquisição de equipamentos novos, incluindo todos os impostos de importação e venda, taxa de câmbio conforme a data do anúncio e custos de distribuição, o investimento que a Prefeitura de São Paulo precisaria fazer para aquisição de todos os equipamentos doados, incluindo hardwares e softwares, corresponde ao valor anunciado”. Ou seja, a secretaria alega que, por se tratar de produtos usados, não é possível calcular seu valor, mas que a Prefeitura mesmo assim anunciou um valor baseado no valor de produtos novos. Além disso, inclui no cálculo gastos tais como impostos de importação e venda, custos de distribuição etc. que não ocorreram, já que o material já havia sido importado e vinha do Rio de Janeiro e não dos Estados Unidos.

O cálculo por trás dos valores atribuídos a doações de alguns serviços também não é claro. Há diversas doações de serviços de consultoria, por exemplo, em que não se sabe qual foi o serviço prestado, por quantas pessoas, por quanto tempo e qual foi o resultado.

Após receber críticas quanto à transparência do processo de recebimento de doações, a Prefeitura publicou em abril de 2017 um edital de chamamento público para recebimento de doações de bens e serviços5. O edital, porém, lista muitos itens genéricos (tais como “bens móveis e equipamentos em geral” e “outros serviços”), que na prática não permitem a manifestação de interesse por parte de empresas, e outros bastante específicos, o que pode suscitar dúvidas sobre um possível direcionamento do edital. Além disso, não fica claro qual é o interesse público envolvido nos pedidos de doação – por exemplo, pedidos de doação de serviços de consultoria sobre metodologias tipicamente utilizadas na iniciativa privada, tais como “branding”, “desdobramento de metas em nível individual” e “implantação de processos de qualidade total”.

 

3.3. Subvertem o princípio da representação democrática, dando poder de ingerência política a empresas

Em alguns casos, a própria doação é questionável do ponto de vista do interesse público. A organização Comunitas, por exemplo, em conjunto com a consultoria McKinsey, doou R$ 3.727.189,50 em serviços de consultoria à Prefeitura. Uma dessas consultorias, avaliada em R$ 2.836.151,60 consiste, segundo o termo de doação, em um “diagnóstico dos principais desafios da cidade de São Paulo, tendo como referência as melhores cidades para se viver”. Entre as atividades previstas estão: “Apoio no levantamento e consolidação de planos existentes da cidade (Plano Diretor e Plano de Metas anuais)”; “apoio ao levantamento de dados-chave para a cidade e benchmarks”; “apoio na elaboração de uma visão de legado de longo prazo e marca da nova gestão”; “apoio na capacitação das equipes de força tarefa”; e “participação nas discussões iniciais sobre o plano de metas”. Para tanto, a Comunitas e a McKinsey disponibilizam funcionários para trabalhar dentro da Prefeitura e obter os dados necessários para a consultoria.

A consultoria é oferecida no âmbito do programa Juntos pelo Desenvolvimento Sustentável, da Comunitas. O programa consiste numa “coalizão de líderes empresariais em prol da gestão pública no Brasil”. Segundo a Comunitas, o programa foi criado em 2012 a partir de uma reflexão feita por acionistas e presidentes de empresas nacionais, que desenvolveram “um modelo inovador de qualificação dos investimentos sociais corporativos ao optar pela atuação direta em parcerias com administrações municipais”.

O objetivo do programa, para a organização, é “promover a participação da sociedade na administração pública, com a inclusão de cidadãos nas discussões e nos processos de tomada de decisões sobre as prioridades municipais. O envolvimento de líderes empresariais compreende um dos eixos fundamentais no sucesso do programa. Além de garantirem a sustentabilidade financeira do Juntos, através do investimento direto de recursos, os líderes são convidados a participar do monitoramento das iniciativas e da definição de diretrizes de longo prazo, atuando em diálogo constante com os municípios.”

O programa tem um modelo que a Comunitas chama de “governança compartilhada”. No termo de doação, a organização descreve as diversas instâncias de governança: “o Comitê de Líderes é a principal esfera da governança do Programa. Composto por líderes empresariais, é responsável por estabelecer diretrizes, determinar o escopo das atividades e monitorar as ações em cada cidade. A Comunitas promove reuniões mensais com o grupo, nas quais são definidas as ações estratégicas do período seguinte, bem como são avaliados os resultados do programa como um todo. Em cada cidade, o comitê atua em diálogo com um grupo de líderes empresariais locais. Juntos, o Comitê de Líderes e o comitê de Líderes Locais formam o Núcleo de Governança, que estabelece um compromisso de governança compartilhada e transparente com o prefeito e seus secretários.”

O Núcleo de Governança do programa é formado por: Carlos Jereissati Filho (Iguatemi); Elie Horn (dono da Cyrela); Jorge Gerdau (Gerdau); José Eduardo Queiroz (sócio-diretor do escritório de advocacia Mattos Filho); José Ermírio de Moraes Neto (Votorantim); José Roberto Marinho (Globo); Pedro Paulo Diniz (Pão de Açúcar); Ricardo Villela Marino (Itaú Unibanco); Rubens Ometto Silveira Mello (Cosan); Wilson Ferreira Jr. (Eletrobrás).

Segundo o site da Comunitas, “o Núcleo de Governança do Juntos é formado por alguns dos maiores líderes empresariais brasileiros, que assumiram o compromisso de apoiar a administração pública municipal a tornar-se mais eficiente, resultando no desenvolvimento do país. Esses líderes envolvem-se diretamente nos projetos, o que vai além do investimento de recursos. São realizados encontros estratégicos periódicos, onde compartilham experiências com os gestores públicos, acompanham a evolução das iniciativas e colaboram para definir as diretrizes das ações. (…). Na prática, essa interação funciona por meio de reuniões periódicas estratégicas. Por exemplo, nas Reuniões de Governança, líderes empresariais locais, prefeitos, secretários integrantes dos comitês gestores e parceiros técnicos do Programa Juntos, encontram-se a fim de debater sobre expectativas, desafios e oportunidades do programa.

A doação da Comunitas apresenta dois problemas principais: o primeiro é que dá acesso privilegiado a informações estratégicas e a funcionários a empresas que são clientes ou clientes em potencial da McKinsey. O segundo é que coloca empresários em posição privilegiada para defender seus próprios interesses em assuntos de importância vital para a cidade. No caso desta consultoria, eles têm acesso direto ao prefeito e aos seus secretários e papel importante na definição de metas e diretrizes relacionadas ao seu campo de atuação. Empresários ligados a empresas tais como Cyrela e Gerdau, por exemplo, ajudam a Prefeitura a pensar no Plano Diretor da cidade (ver box na página seguinte). Além disso, em dezembro, como resultado de outra “parceria” com Comunitas, a Prefeitura anunciou o programa Aprova Rápido, que reduz o tempo para obtenção de alvarás para construção de grandes obras de mais de 500 dias para no máximo quatro meses. Obras menores continuam a se submeter ao antigo processo de licenciamento.6

O vereador Eduardo Suplicy entrou com representação contra a Prefeitura no Ministério Público, pedindo a investigação da parceria, alegando que houve repasse de informações privilegiadas do poder público às organizações e que a doação de serviços foi documentada muito antes do chamamento público que oficializou a relação.7

Em Porto Alegre, onde o prefeito tentou implementar programa equivalente, o Sindicato dos Municipários, em conjunto com vereadores do PT e do PSOL, moveram uma ação contra a Prefeitura pedindo a suspensão da iniciativa, alegando que a parceria com a Comunitas não cumpria requisitos mínimos de transparência e da lei de licitações. A Justiça acatou o pedido em caráter liminar e suspendeu a parceria. Em setembro, a Prefeitura rescindiu o contrato com a Comunitas.8

BOX

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Ligações perigosas

O envolvimento da Cyrela com a Prefeitura é particularmente ilustrativo dos potenciais conflitos de interesse que podem advir de relações tão próximas entre empresários e poder público. Elie Horn9, empresário e fundador da Cyrela, doou R$ 100 mil para a campanha de Doria e organizou uma exposição em homenagem à carreira da artista plástica Bia Doria, esposa do prefeito, em 2016. Também esteve envolvido nas negociações da cessão da gleba (propriedade da Cyrela) em que será instalado o Parque Augusta. Em troca, a empresa negocia receber terrenos públicos.

Em junho de 2017, o jornal Nexo publicou uma matéria expondo os diversos interesses da Cyrela junto à Prefeitura, principalmente quanto à flexibilização do Plano Diretor da cidade,10 que estabelece regras para a construção civil. A revisão do plano poderá resultar no incremento do potencial construtivo – por exemplo, aumentado o número de pavimentos a serem construídos, e ampliando assim os ganhos da construtora fundada por Horn.11

O segundo nome por trás da Cyrela e que passou a participar diretamente do secretariado de Doria é Cláudio Carvalho de Lima (ex-vice-presidente da construtora). A matéria do jornal Nexo foi publicada pela ocasião da nomeação de Lima para a Secretaria Especial de Investimento Social, pasta criada no dia 1º de junho de 2017. Lima, segundo o artigo, teria deixado o cargo um dia antes de sua nomeação para assumir a nova pasta, que tem como objetivo “viabilizar recursos do setor privado”, como doações, para os programas sociais nas áreas de educação, saúde e assistência social. Vale lembrar que, para a gestão da nova pasta, Doria transferiu uma verba de R$ 30 milhões comprometida com a construção de terminais de ônibus, controle de enchentes e de reforma de ponte na Zona Norte12 para cobrir as despesas da secretaria e da também recém-criada empresa pública SP Parcerias.

Lima era vice-presidente da Cyrela quando a construtora fez a doação da reforma dos banheiros do Parque do Ibirapuera, ao custo estimado de R$ 450 mil. Em entrevista coletiva cedida no dia da nomeação de Lima, o prefeito declarou explicitamente que o fato do amigo ter sido peça importante para a realização da obra, quando trabalhava na incorporadora, contribuiu para sua indicação ao cargo. A referida matéria publicada pelo jornal Nexo no dia seguinte à criação da pasta traz um trecho da declaração do prefeito feita na coletiva: “Ele conduziu isso tão bem que nós o convidamos para que ele pudesse ocupar essa secretaria.”13 Ou seja, a mesma pessoa que fez a doação em nome da empresa privada agora passa a integrar a Prefeitura, representando-a na inauguração da reforma do equipamento público financiada por ele mesmo.

A Cyrela é também mais uma das empresas filiadas à Lide, empresa que Doria passou aos seus filhos ao assumir a Prefeitura. Em matéria do jornal O Estado de S. Paulo publicada no dia da nomeação de Lima, o prefeito declarou não haver “nenhum conflito de interesse, até porque ele está desligado da Cyrela e passa a ser um funcionário da Prefeitura de São Paulo. Além do que a Cyrela tem nos ajudado bastante ao longo desses meses financiando vários projetos sem nenhuma contrapartida, como é o caso dos banheiros do Ibirapuera, a própria Marquise, o CTA (Centro Temporário de Acolhimento), onde a Cyrela fez um investimento substantivo para viabilizá-lo.”14

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3.4. Doações oneram a Prefeitura

A doação pode ser uma forma de minimizar os custos das empresas, onerando a Prefeitura. Em alguns casos, também trazem vantagens à empresa doadora, já que a doação, na prática, obriga o poder público a comprar serviços ou equipamentos da empresa doadora para fazer funcionar ou manter o equipamento doado. Em maio, por exemplo, João Doria recebeu a maior proposta de doação já feita no país a um município, pela empresa Cisco. São equipamentos tecnológicos de conectividade e segurança, usados durante os Jogos Olímpicos, com valor de R$ 300 milhões. A Lei Olímpica estabelece que as empresas que importaram produtos sem pagamento de impostos para uso da infraestrutura dos Jogos devem levar os materiais de volta aos seus países de origem, salvo se houver algum tipo de doação, o que poderia sair mais barato para as empresas. O mesmo material foi rejeitado pela Prefeitura do Rio. Estudo da IplanRio apontava que, para utilização dos equipamentos, seria necessário um gasto de R$ 235 milhões para instalação das redes. Além disso, a manutenção anual era estimada em R$ 45 milhões. Ou seja, já no primeiro ano, a despesa da Prefeitura seria equivalente ao valor doado, e a cidade ainda teria que arcar com uma manutenção anual alta. O estudo concluía que o emprego dos equipamentos “tornaria obrigatória a obtenção de material de consumo exclusivamente com a empresa doadora, impedindo licitações e a livre concorrência”15.

Da mesma forma, a Secretaria da Saúde anunciou uma parceria com empresas farmacêuticas, que doariam milhões de reais em medicamentos para resolver o problema da falta de acesso da população a remédios. Segundo a secretaria, as doações chegavam a R$ 35 milhões (segundo a tabela de doações disponibilizada pela Prefeitura, contudo, o valor era de R$ 11,9 milhões). Em troca, contudo, as empresas receberam isenção de impostos equivalente a R$ 66 milhões. Além disso, doaram remédios próximos ao vencimento, que já não poderiam ser comercializados, limitando sua utilidade e fazendo com que economizassem também no descarte dos medicamentos, que é um processo caro. Segundo reportagem da rádio CBN do início de junho de 2017, os remédios se acumulavam em várias UBS16. O Ministério Público abriu uma investigação sobre o caso17. Em novembro, a rádio publicou nova reportagem alegando que, no período entre junho e agosto, até 35% dos remédios doados haviam sido descartados, cinco vezes mais do que no mesmo período do ano anterior, na gestão do prefeito Fernando Haddad.18

Trabalhadores da rede municipal de saúde denunciaram ainda que o prefeito queria alterar a forma como os remédios gratuitos são distribuídos na rede, retirando dos postos públicos e concentrando-os em farmácias privadas.19

 

3.5. Algumas empresas doadoras obtiveram contrato de prestação de serviço com a Prefeitura

Empresas que fizeram doações obtiveram contratos com a Prefeitura após o anúncio de doação, colocando em questão o caráter “desinteressado” das doações. Duas empresas que fizeram doações à Prefeitura de pouco mais de R$ 350 mil em fevereiro, a Meng Engenharia, Comércio e Indústria Ltda. e a Arc Comércio Construções e Administração Ltda., por exemplo, obtiveram contratos para manutenção de semáforos posteriormente no valor de mais de R$ 13 milhões.20

 

3.6. Empresas doadoras têm dívidas com o município

Diversas empresas que fizeram doações são devedoras de impostos. Doria costuma mencionar publicamente as empresas que fazem doações à Prefeitura como “empresas do bem” ou “cidadãs”. Algumas dessas empresas, contudo, devem muito mais em impostos do que doam à Prefeitura. A Siemens, por exemplo, que doou o uso de um tomógrafo por quatro meses, de valor estimado em R$ 800 mil pela Prefeitura, devia, à época da doação, quase R$ 80 milhões em ISS. A Único Asfaltos, que doou R$ 800 em uma tonelada de pavimento seco para a cidade, devia R$ 193 mil na época. A Bemis Latin America tinha dívida de R$ 727 milhões e doou pouco menos de R$ 6 mil em camisetas. Várias outras empresas que fizeram doações, tais como Ambev e Ultrafarma, também eram devedoras da Prefeitura.21

 

3.7. Doações servem como publicidade informal das empresas

Doria utilizou as redes sociais para citar marcas e produtos de empresas parceiras. Além disso, houve cessão de espaço publicitário da Ultrafarma para veiculação de banner do programa Cidade Linda durante jogo de futebol da seleção brasileira. Em São Paulo, as Secretarias Municipais e as Subprefeituras de São Paulo são autorizadas – após análise jurídica – a receber bens e serviços em doação, sendo possível a inserção do nome do doador no objeto ou material de divulgação. Para que a divulgação da marca ocorra, desde alteração normativa promovida pelo ex-prefeito Gilberto Kassab (Decreto nº 52062/2010), é necessária a anuência da Prefeitura, que avalia se há o atendimento ao interesse público, considerando inclusive o valor dos investimentos e a área de divulgação da marca. Em fevereiro, durante uma entrevista à Folha de S. Paulo, a empresa Peebox, especializada em banheiros químicos, viu na estratégia de Doria uma forma de divulgar um produto recém desenvolvido. De acordo com o diretor Plínio Pimentel: “Tivemos uma exposição muito grande (depois da doação)”.

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Notas

  1. G1, Iniciativa privada doou R$ 255 milhões à Prefeitura de SP, diz Doria https://g1.globo.com/sao-paulo/noticia/iniciativa-privada-doou-r-255-milhoes-a-prefeitura-de-sp-diz-doria.ghtml
  2. https://www.nexojornal.com.br/expresso/2017/03/01/Quais-as-normas-e-os-limites-para-os-contratos-de-doa%C3%A7%C3%B5es-de-empresas-%C3%A0-Prefeitura-de-SP
  3. Entre janeiro e outubro de 2017, a Prefeitura registrou cerca de 540 doações ou cessões ou comodatos ou acordos de cooperação com a iniciativa privada. Analisamos em mais profundidade apenas as doações de mais de R$ 1 milhão.
  4. http://sao-paulo.estadao.com.br/blogs/por-dentro-da-metropole/doria-anuncia-parceiro-para-viveiro-do-ibirapuera-antes-de-selecao-publica/
  5. http://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/upload/gestao/Edital%20de%20Chamamento%20Publico%2002-2017.pdf
  6. http://www.comunitas.org/portal/prefeitura-de-sp-simplificara-a-emissao-de-alvara-para-grandes-empreendimentos-com-apoio-da-comunitas/ e https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/prefeitura-diz-que-vai-emitir-alvara-para-empreendimentos-com-mais-de-1500-m-em-ate-120-dias-em-sp.ghtml
  7. http://eduardosuplicy.com.br/wp-content/uploads/2017/04/Representa%C3%A7%C3%A3o-MP-Programa-de-Metas_vf.pdf e http://www.redebrasilatual.com.br/cidadania/2017/04/suplicy-pede-ao-mp-que-apure-relacao-de-doria-com-consultorias-privadas-no-programa-de-metas e http://www.docidadesp.imprensaoficial.com.br/RenderizadorPDF.aspx?ClipID=ELMM46KI6APNRe7TQKO7SSTFRCA
  8. https://gauchazh.clicrbs.com.br/porto-alegre/noticia/2017/05/liminar-da-justica-suspende-acordo-entre-prefeitura-de-porto-alegre-e-comunitas-9794984.html
  9. Elie Horn foi fundador da construtora Cyrela, e atualmente se afastou da empresa para se dedicar a outros setores. Alguns matérias jornalísticas vêm apurando seu envolvimento na compra de hospitais municipais sucateados com o propósito de lançar clínicas populares nos moldes “Doutor Consulta”. Por outro lado, o aumento do abandono da saúde na cidade de São Paulo por parte da gestão Doria pode dar margem aos argumentos neoliberais de privatização. Cf. http://www.valor.com.br/empresas/5147274/bozano-e-elie-horn-negociam-compra-de-oito-hospitais-em-sp. Acesso em 20 de dezembro de 2017.
  10. O Plano Diretor da cidade foi aprovado na gestão Haddad depois de quase dois anos de debates públicos e mais de 13 mil sugestões. Cf. http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2017/06/1892797-no-escuro-gestao-doria-inicia-ajuste-nas-regras-que-definirao-novas-obras.shtml?cmpid=twfolha. Acesso em 20 de dezembro de 2017.
  11. https://www.nexojornal.com.br/expresso/2017/06/02/Doria-cria-secretaria-para-receber-doa%C3%A7%C3%B5es-privadas.-Quais-as-quest%C3%B5es-envolvidas-na-medida. Acesso em 20 de dezembro de 2017.
  12. http://sao-paulo.estadao.com.br/blogs/por-dentro-da-metropole/doria-tira-verba-de-r-30-mi-de-obras-para-pagar-gestao-das-privatizacoes/. Acesso em 20 de dezembro de 2017.
  13. https://www.nexojornal.com.br/expresso/2017/06/02/Doria-cria-secretaria-para-receber-doa%C3%A7%C3%B5es-privadas.-Quais-as-quest%C3%B5es-envolvidas-na-medida. Acesso em 20 de dezembro de 2017.
  14. http://sao-paulo.estadao.com.br/noticias/geral,prefeitura-cria-secretaria-de-doacoes-e-novo-titular-vai-inaugurar-a-propria-obra,70001822645. Acesso em 10 de dezembro de 2017.
  15. http://www.srzd.com/brasil/doacao-jogos-olimpicos/
  16. http://cbn.globoradio.globo.com/sao-paulo/2017/06/07/EMPRESAS-DOAM-REMEDIOS-PERTO-DE-VENCER-SE-LIVRAM-DO-CUSTO-DO-DESCARTE-E-TEM-R-66-MILH.htm
  17. https://g1.globo.com/sao-paulo/noticia/mp-abre-inquerito-para-investigar-doacoes-de-medicamentos-recebidos-pela-prefeitura-de-sp.ghtml
  18. http://cbn.globoradio.globo.com/editorias/pais/2017/11/24/GESTAO-DORIA-DESCARTA-ATE-35-DE-REMEDIO-DOADO-NO-MES-DO-VENCIMENTO.htm
  19. https://brasil.elpais.com/brasil/2017/01/27/politica/1485535431_463009.html
  20. https://g1.globo.com/sao-paulo/noticia/mp-investiga-suspeita-de-fraude-em-licitacao-de-doria-para-conserto-de-semaforos-de-sp.ghtml
  21. http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2017/10/1929335-doria-faz-propaganda-de-empresas-doadoras-que-devem-a-prefeitura.shtml