São Paulo S.A. - retrato de um projeto privatizante de governo

Apresentação

Este texto apresenta os resultados de uma pesquisa realizada pelo Vigência sobre a política de privatizações de ativos, serviços e equipamentos públicos, bem como de recebimento de doações empresariais, no primeiro ano da gestão do ex-prefeito João Doria.

Este texto apresenta para o público geral e, em particular, para os habitantes da cidade de São Paulo, os resultados de uma pesquisa realizada pelo Vigência sobre a política de privatizações de ativos, serviços e equipamentos públicos, bem como de recebimento de doações empresariais, no primeiro ano da gestão do ex-prefeito João Doria. A pesquisa mapeia as principais propostas de privatização apresentadas pela gestão e as maiores doações recebidas pela Prefeitura e aponta se realmente são, como defendido pelo governo Doria, vantajosas do ponto de vista econômico e social.

O Vigência é um coletivo de ativistas cujo foco de atuação e pesquisa são os efeitos da concentração econômica sobre o bem-estar e a justiça social e o funcionamento da democracia em nossa sociedade. Em 2016, lançamos o relatório “A privatização da democracia. Um catálogo da captura corporativa no Brasil”,1 em que descrevemos e analisamos os mecanismos pelos quais as empresas se apropriam do Estado, em diversos setores da economia brasileira, fazendo com que decisões sobre orçamento e políticas públicas beneficiem interesses privados, frequentemente em detrimento do interesse público. Chamamos esse quadro de “privatização da democracia” e o descrevemos como sendo um fenômeno característico do “capitalismo extremo” contemporâneo, que produz sociedades com extrema concentração de renda e extrema concentração do comando das empresas.

No relatório de 2016, a privatização da democracia foi abordada na esfera nacional. Para este relatório, desenvolvido ao longo do segundo semestre de 2017 e início de 2018, o Vigência definiu, em conjunto com a Fundação Rosa Luxemburgo, focar na gestão do prefeito João Doria a fim de investigar tal fenômeno no âmbito local. A escolha se deveu tanto ao fato de o ex-prefeito ser um empresário – e não apenas um empresário, mas um empresário cuja principal linha de atuação é vender acesso a políticos a outros empresários, ou seja, facilitar o lobby2 – quanto ao fato de toda a campanha de Doria ter se apoiado num discurso que defendia a lógica do mercado como a forma mais eficiente de gestão dos bens e serviços públicos. Além disso, sua campanha propunha um modelo de relação empresa-Estado que incluía a noção do empresário benfeitor que colabora com o Estado não apenas pagando impostos, mas também realizando onerosas doações supostamente desinteressadas: a lógica privada seria boa não apenas como modelo de gestão, mas também pelos benefícios diretos que o bom empresariado poderia canalizar para o Estado. Por esses motivos, acreditamos que investigar a política de privatizações e de doações empresariais do governo municipal, testando essa suposta eficiência do ponto de vista econômico e sua eficácia do ponto de vista do interesse público, seja uma oportunidade para colocar à prova a retórica privatista que vem embasando o discurso de lideranças políticas e de jornalistas e formadores de opinião mais recentemente. Além disso, consideramos que a pesquisa pode fornecer pistas relevantes de como se dá a relação desequilibrada entre o público e o privado na instância local.

Programa de Privatização. Os esforços de privatização do governo Doria, lançados pela Secretaria Municipal de Desestatização e Parcerias criada nessa gestão, tiveram início a toque de caixa já em meados de 2017, primeiro ano de seu mandato, com projetos de lei encaminhados à Câmara dos Vereadores sem consulta pública prévia a respeito do interesse público de cada iniciativa. A maioria dos projetos foram criticados pela oposição por se basearem em textos classificados como imprecisos, contendo poucas informações sobre como se daria cada um dos processos de privatização e quais seriam as contrapartidas exigidas das empresas etc.

Os casos. Levando-se em consideração a natureza do objeto a ser investigado (programas recém-lançados pela gestão Doria, que se encontram em etapas iniciais), bem como a exiguidade de tempo para sua execução, o Vigência optou por focar na análise de seis propostas de privatização de serviços e/ou equipamentos, dentre o universo dos dez itens prioritários elencados pela Secretaria Municipal de Desestatização e Parcerias, de um universo de 55 itens que a Prefeitura indicou como passíveis de serem privatizados (ver tabela na p. 20). A escolha de cada um dos exemplos contemplou os seguintes aspectos:

– Todos os seis exemplos foram alvo de discussões e aprovações na Câmara Municipal ainda em setembro de 2017; ou seja, havia insumos suficientes para iniciarmos uma investigação sobre as propostas do governo e os processos políticos em jogo;

– Garantimos pelo menos um exemplo de cada modelo de privatização (alienação e concessões);

– Procuramos ainda contemplar áreas diversas, tais como transporte, saúde, lazer e cultura.

Assim, escolhemos nos aprofundar na privatização do Complexo Anhembi (alienação), bem como nas concessões do sistema de bilhetagem dos transportes públicos de São Paulo (PPP); do Pacaembu; dos cemitérios e do crematório da cidade; e dos parques e dos mercados e sacolões municipais.

Paralelamente, o trabalho investigativo analisou cada uma das doações ao município realizadas entre janeiro e outubro de 2017 cujo valor estimado ultrapassava R$ 1 milhão, segundo o Portal da Transparência do município, procurando identificar a qual interesse público elas serviam e quais possíveis impactos econômicos e sociais elas poderiam acarretar.

A metodologia. Uma vez estabelecidas as políticas a ser investigadas na prefeitura de João Doria, a pesquisa centrou-se no levantamento de dados do programa de privatização. O trabalho investigativo usou como fonte primária os projetos de lei, bem como dados publicados no site da Câmara de Vereadores, inclusive promemoria das audiências públicas. Além disso, os pesquisadores utilizaram-se de matérias publicadas em jornais e revistas a fim de acompanhar o debate público, tanto entre os vereadores, como também entre a Prefeitura e a sociedade civil e os afetados diretamente pelos projetos (como funcionários desses equipamentos, locatários etc.). A investigação também utilizou-se de dados primários tais como os publicados pela Prefeitura em seu Portal da Transparência, informações obtidas por meio da Lei de Acesso à Informação (LAI) e entrevistas com assessores da Câmara.

As principais conclusões. Após analisar os dados, concluímos que, ao contrário do defendido pelo prefeito, as privatizações nem sempre desoneram o município e nem sempre servem ao interesse público. Tampouco as doações necessariamente representam economia para o Estado ou vantagens para os cidadãos.

Vários dos equipamentos e serviços a ser privatizados com prioridade pelo governo Doria têm balanço anual positivo, tais como os mercadões da região central. Em 2016, por exemplo, o Mercado Central teve superávit de R$ 5,3 milhões. Entre outros equipamentos na lista das privatizações que tampouco tem dado prejuízo à Prefeitura está o Anhembi que, segundo dados publicados pela Prefeitura, fechou o ano de 2016 positivamente. Além disso, não há nenhuma pesquisa que corrobore a alegação da Prefeitura de que esses serviços são insatisfatórios ou de que as privatizações melhorariam a sua qualidade.

A privatização do sistema de bilhetagem de ônibus é outro exemplo de transação questionável do ponto de vista do interesse público. Hoje, quando um usuário se cadastra no sistema da Prefeitura, é convidado a preencher uma “pesquisa de perfil socioeconômico”, além de fornecer dados básicos, como endereço, idade e sexo. De acordo com a proposta de privatização atual, a empresa que comprar o sistema poderá usar os dados dos usuários para fins comerciais, além de rastrear os deslocamentos e o comportamento dos usuários.

No caso da privatização do Complexo do Anhembi + SPTuris, o projeto parece facilitar a especulação imobiliária em uma das áreas mais valorizadas da cidade: a Prefeitura, por meio do Projeto de Intervenção Urbana (PIU), permite um aumento de 68% do potencial construtivo do terreno do complexo (de 400 mil para 1,7 milhão de metros quadrados), desobedecendo o Plano Diretor da cidade e a Lei de Zoneamento da região. Além disso, ela reduz significativamente o valor da contrapartida que o futuro dono da área terá de pagar ao município para construir acima do limite mínimo permitido na região, a chamada outorga onerosa. Na prática, o texto aprovado pelos vereadores no início de maio diminui em 46% o preço do metro quadrado que será construído a mais pelo empreendedor.3

As doações também trazem problemas. Frequentemente são pouco transparentes. Adicionalmente, muitas delas parecem não ter sido pautadas pelas necessidades da cidade e das(os) cidadãs(os) e, às vezes, parecem ter sido de fato guiadas pelos interesses das empresas. O que é ainda mais grave, em alguns casos, as doações subverteram princípios democráticos, permitindo a empresas doadoras ganhar ingerência em definições de diretrizes políticas municipais de seu próprio interesse.

No que diz respeito ao último ponto, em alguns casos, a doação permite a empresários doadores ganhar acesso a dados estratégicos e exercer influência indevida sobre políticas públicas de seu próprio interesse. A organização Comunitas, por exemplo, em conjunto com a consultoria McKinsey doou R$ 3.727.189,50 em serviços de consultoria à Prefeitura. Uma dessas consultorias, avaliada em R$ 2.836.151 consiste, segundo o termo de doação, em um “diagnóstico dos principais desafios da cidade de São Paulo, tendo como referência as melhores cidades para se viver”. Mas a doação da Comunitas apresenta dois problemas principais: o primeiro é que dá acesso privilegiado a informações estratégicas e a funcionários da Prefeitura que são de interesse de empresas que são clientes ou clientes em potencial da McKinsey. O segundo é que coloca empresários em posição privilegiada para defender seus próprios interesses em assuntos de importância vital para a cidade. No caso desta consultoria, eles têm acesso direto ao prefeito e aos seus secretários e papel importante na definição de metas e diretrizes relacionadas ao seu campo de atuação. Empresários ligados a empresas tais como Cyrela e Gerdau, por exemplo, ajudam a Prefeitura a pensar no Plano Diretor da cidade.

Além disso, apesar de as doações serem defendidas por supostamente trazer benefícios materiais diretos para a Prefeitura, elas têm representado custos para o erário público. A Secretaria da Saúde, por exemplo, anunciou uma parceria com empresas farmacêuticas, que doariam até R$ 35 milhões de reais4 em medicamentos para ajudar a resolver o problema da falta de acesso da população a remédios. Em troca, contudo, as empresas receberam isenção de impostos equivalente a R$ 66 milhões. Além disso, doaram remédios próximos ao vencimento, que já não poderiam ser comercializados, limitando sua utilidade – as empresas, porém, ganharam ao economizar no descarte dos medicamentos, que é um processo caro. Segundo reportagem da rádio CBN de junho de 2017, os remédios se acumulavam em várias UBS. O Ministério Público abriu uma investigação sobre o caso. Em novembro, a rádio publicou nova reportagem alegando que, no período entre junho e agosto, até 35% dos remédios doados haviam sido descartados, cinco vezes mais do que no mesmo período do ano anterior, na gestão do prefeito Fernando Haddad.

No que diz respeito à transparência, no início da gestão não havia publicações no Diário Oficial sobre todas as doações recebidas. Em fevereiro de 2017, foi anunciado que informações sobre as doações seriam publicadas no Portal da Transparência da Prefeitura. Os dados disponibilizados, contudo, são genéricos e não incluem a memória de cálculo para se chegar ao valor declarado. Alguns valores listados também são questionáveis. A maior doação registrada, pela Cisco, no valor de R$ 300 milhões, por exemplo, não discrimina os itens recebidos e nem o valor de cada item. Ao ser questionada sobre a memória de cálculo do valor, a Secretaria Municipal de Desestatização e Parcerias respondeu que os equipamentos doados foram utilizados na realização dos Jogos Olímpicos e Paraolímpicos Rio 2016 e que, “por tratar-se de equipamento usado, não há tabela de referência no mercado local”, mas que o valor foi calculado com base no que seria o custo de comprar equipamentos novos.

O que este primeiro ano de gestão do prefeito João Doria parece indicar é que sua orientação privatista – seja como critério de organização da gestão, seja como cessão para a iniciativa privada de áreas, serviços ou bens públicos ou, no caso das doações, como tentativa de mostrar o lado “altruísta” dos agentes do mercado – não necessariamente resolve os problemas financeiros que o prefeito aponta nem traz os benefícios que promete, assumindo assim um caráter demagógico. Tampouco a democracia é fortalecida por este estilo de gestão. Ao contrário: ela sofre quando interesses privados são favorecidos ante o interesse público, quando a transparência é reduzida e quando a relevância dos mecanismos participativos de controle é diminuída.

Pretendemos, com este texto, contribuir para dar visibilidade a essa relação entre o público e o privado que vemos como nociva para a cidade de São Paulo. Esperamos que os dados e informações aqui compilados possam servir de munição para organizações, movimentos e indivíduos que queiram se contrapor a esse discurso e a essa prática que coloca o privado acima do público. Acreditamos que o caráter público da gestão só será ampliado se a sociedade paulistana conseguir colocar um limite claro ao privatismo do prefeito João Doria e puder se envolver ativamente na construção de espaços de gestão mais democráticos.

Leia o nosso informe completo a seguir.