A democracia é o mais comum dos bens comuns. Como ideal, é o sistema em que o governo é exercido pelo povo. Nas sociedades contemporâneas, é o sistema que tem sido pactuado como forma de convívio e busca coletiva do interesse público, como expressão da solidariedade coletiva, como forma de dirimir conflitos e de escolher os responsáveis por zelar pelo bem de todas e todos, exigindo de seus participantes obrigações básicas: a do respeito à lei e a exigência de participação política. A forma pela qual o ideal democrático é posto em prática, contudo, varia imensamente e encontra limites tão diversos quanto os procedimentos adotados na tentativa de que se realize. Para alguns autores, o teste para saber se um procedimento é democrático ou não é verificar se “todos os membros [do grupo, associação ou sociedade em questão] têm o mesmo direito a ter voz e fazer com que suas opiniões contem”1 – prova no qual o atual sistema político brasileiro certamente não passaria.
Está consolidado hoje no Brasil um paradigma de eleição que concede papel central ao poder do dinheiro, conduzindo, dessa forma, ao que chamamos de “privatização da democracia”. Campanhas bilionárias, com candidatos movidos por princípios de marketing eleitoral e promessas guiadas por pesquisas de opinião, não apenas esvaziam as eleições de seu sentido político como tornam os partidos devedores das grandes empresas ou indivíduos que as financiam. Seja para pagar suas “dívidas” ou para garantir futuras doações, muitos políticos aprovam medidas favoráveis a seus doadores.
A JBS e a Odebrecht, pivôs dos maiores escândalos a ocupar o noticiário político recente, não coincidentemente, estão entre as maiores doadoras das eleições de 2014 – que, tendo custado R$ 5,1 bilhões, foram o pleito mais caro da história do país (como base de comparação, o de 2002 custou R$ 792 milhões). A JBS-Friboi, maior financiadora de campanhas, doou R$ 366 milhões em 2014, tendo conseguido eleger 162 congressistas; já a Odebrecht ofertou R$ 111 milhões oficialmente. Também fizeram doações milionárias a políticos as construtoras Andrade Gutierrez, UTC Engenharia, Galvão Engenharia, OAS e Queiroz Galvão, os bancos Bradesco e Itaú e a empresa do ramo de alimentação e bebidas Ambev. Juntas, essas dez empresas foram responsáveis pelo financiamento de campanha de 70% dos deputados federais.
Segundo delações de executivos da Odebrecht relatadas recentemente na imprensa, a empresa, entre 2002 e 2015, “pagou propina, fez contribuições oficiais ou doou por meio de caixa dois para tentar influenciar o destino de pelo menos 20 atos do Legislativo e do Executivo, em sua maioria a edição e a aprovação de medidas provisórias”, principalmente ligadas a questões de tributação ou renegociação de dívidas com o governo. E, na véspera da aprovação da reforma trabalhista pelo Congresso, jornalistas do The Intercept revelaram que pelo menos um terço das mudanças na CLT propostas por deputados foram literalmente redigidas por lobistas de associações de bancos, indústria e transportes. Ou seja, as eleições, que deveriam ser um dos principais momentos para se discutir o que é o interesse público, acabam se transformando em um meio para a obtenção, em última instância, do lucro dos agentes privados. Além disso, e principalmente, essas empresas e indivíduos exercem uma influência muito maior do que sua representatividade permitiria num sistema democrático “ideal” em que todos teriam igual direito a ter sua voz ouvida.
Por um sistema público eleitoral
Apesar de atingirem representantes de todo o espectro político, o que os últimos escândalos de corrupção têm em comum é o papel protagonista das empresas. São elas que redigem leis e fazem passar reformas e desonerações em seu próprio favor, exigem cargos para políticos aliados, pagam propina e, quando lhes é conveniente, trocam a possibilidade de continuar lucrando pelas cabeças dos políticos que elas próprias alçaram ao poder. Mas não podemos deixar que empresas privadas continuem dando as cartas no Brasil: além de fazer com que interesses privados prevaleçam sobre o interesse público, esse quadro abala a confiança da população na própria democracia.
O que hoje parece corriqueiro nas crônicas dos jornais – a infiltração dos interesses econômicos na dinâmica da democracia – produz fortes impactos sobre outras dimensões da vida democrática, em particular sobre a busca do chamado interesse público – ou bem comum – e sobre a participação. Isso redunda, por sua vez, em mais liberdade para interesses econômicos operarem. É por isso que este ponto se torna central para desamarrar o nó da crise da democracia brasileira e avançar para um sistema que se aproxime mais do ideal democrático.
Uma das formas de desamarrar esse nó é cortando a relação promíscua entre dinheiro e eleições mediante reformas estruturais nas regras que regulam o sistema político, num esforço de desprivatizar a democracia “de cima para baixo”2. Mas como promover essa ruptura?
Muitas das tentativas de resolver a questão operam pelo lado da oferta – ou seja, são tentativas de regular as doações eleitorais, seja proibindo ou estabelecendo tetos para a doação por certos atores. Os partidos e candidatos, contudo, continuam dependentes de recursos para realizar suas campanhas eleitorais na TV e em outros meios de comunicação. E, como a história recente demonstra, tem sido praticamente impossível regular o fluxo ilegal de dinheiro (caixa 2) para as campanhas. Esse é um dos motivos pelos quais acreditamos que só é possível ir à raiz do problema pelo lado da demanda – ou seja, eliminando a necessidade de candidatos obterem grandes doações de empresas ou indivíduos. Para isso, propomos a criação de um “sistema público eleitoral” que devolva ao processo eleitoral seu caráter público – um movimento de transformação da cultura política brasileira com o objetivo de torná-la mais transparente, legítima e de fato representativa.
O sistema eleitoral atual
As eleições são organizadas pelo Estado, por meio da Justiça Eleitoral, cujo mais alto órgão é o Tribunal Superior Eleitoral: as urnas, o registro dos eleitores e dos candidatos, a fiscalização da votação, a contagem e a garantia de respeito a outras regras que regem as eleições. Já as campanhas eleitorais permanecem como um território mercantilizado. Em grande parte, isso se deve ao fato de que partidos brasileiros, diferentemente do que ocorre em muitos outros países, podem veicular campanhas políticas de TV e rádio com conteúdo e estilo praticamente livres, seja durante o horário gratuito eleitoral ou em outros momentos3. Essa possibilidade criou todo um mercado de marketing eleitoral, encabeçado por publicitários-estrela, pagos com cachês extraordinários, e transformou as campanhas em peças publicitárias. Essa lógica da publicidade é prejudicial à democracia não só por transformar o embate de ideias e propostas em um jogo de cena que transforma o produto “candidato” em um fantoche, encarregado de dizer o que as pesquisas de opinião querem e o que os grupos qualitativos constatam, mas também por criar a necessidade de que partidos obtenham fundos de campanha vultosíssimos e, portanto, endividem-se com quem quer que esteja disposto a fornecê-los.
As campanhas são hoje irrigadas por duas fontes principais: o Fundo Partidário, que em 2016 previu um volume de R$ 819 milhões a ser distribuídos entre os mais de 30 partidos oficialmente registrados no Brasil, e as doações individuais, que – segundo a resolução 23.464/2015 do TSE – limitam-se a no máximo 10% da renda declarada no ano anterior pelo doador. As doações empresariais foram proibidas por essa mesma medida do TSE.
O sistema opera hoje com menos recursos do que nos (não tão distantes) tempos da doação empresarial – que vigorou ainda para as eleições de 2014 –, mas ainda na esfera de um “mercado”. Sem o aporte de dinheiro legal e ilegal (caixa 2) das empresas, o Fundo Partidário, criado em 1965, tornou-se a fonte mais segura de recursos para os partidos. Mesmo antes da proibição do financiamento empresarial de campanhas, a diminuição no fluxo de recursos provocada pelo início da operação Lava Jato esteve entre as motivações do acréscimo de mais de R$ 500 milhões ao Fundo de 2015 que o senador pemedebista Romero Jucá, relator do orçamento, obteve mediante Emenda de Plenário, chegando assim ao valor de R$ 867 milhões (contra R$ 371 milhões de 2014). Nessa situação de seca, os partidos políticos com representação parlamentar batalham agora pela criação de um fundo eleitoral, diferente do partidário, com um aporte inicial de R$ 2 bilhões.
Além dos recursos destinados aos partidos, o Estado brasileiro paga pela campanha eleitoral ao financiar o já mencionado HGPE (Horário Gratuito de Propaganda Eleitoral, de 1962), idealizado como uma forma de permitir o acesso de todos os candidatos à mídia de massas, mesmo aqueles com menos poder de arrecadação. Apenas um terço do tempo do horário gratuito, no entanto, é distribuído igualitariamente entre todos os partidos. Os dois terços restantes são divididos de forma proporcional à representação parlamentar das siglas. Essa forma de distribuição, aliada ao fato de que partidos podem formar coligações e, portanto, “integrar” seu tempo de TV, é uma das responsáveis pela criação de pequenos partidos fundados unicamente para “vender” tempo de propaganda eleitoral gratuita em troca de cargos ou obtenção de vantagens pós-eleição. Além disso, consome grande parte dos recursos públicos destinados às eleições. Para veicular a propaganda eleitoral, as emissoras têm direito a descontar do imposto devido 80% do valor que obteriam com a venda do espaço publicitário naquele horário. Em 2016, o Estado brasileiro deixou de receber cerca de R$ 576 milhões das emissoras.
Principais pontos do sistema público eleitoral
Diante da realidade descrita acima, propomos um sistema público eleitoral, no qual o Estado, em vez de liberar recursos para o mercado eleitoral – por meio do Fundo Partidário, do horário gratuito ou da criação de um novo fundo bilionário de campanhas –, “incorporaria” a concorrência eleitoral em suas funções, retirando-a do mercado. Na disputa pelos os diversos cargos eletivos, nos vários níveis em que se organiza a democracia no Brasil, seria o Estado que proveria a infraestrutura necessária e os mecanismos públicos que fornecessem arenas para o debate de ideias e de propostas políticas.
Avaliamos como fundamental, também, retirar da contenda eleitoral os traços que esta incorporou da lógica da publicidade, cujo fim último é a venda de um produto (nesse caso, o “candidato”), bloqueando assim a escalada de despesas milionárias com produções cinematográficas e marqueteiros-estrela. Uma possibilidade seria restringir total ou parcialmente a publicidade eleitoral na TV e no rádio. Na França, por exemplo, propagandas políticas de TV e rádio são proibidas durante os três meses anteriores às eleições, e durante o período oficial de campanha, a mídia tem que dar exatamente o mesmo espaço/tempo de cobertura e de oportunidade de fala para cada um candidatos e seus apoiadores. Outra, complementar, seria utilizar o horário político gratuito para promover debates sobre diversos temas, entrevistas com os candidatos ou com os responsáveis por seu programa em diferentes áreas, além de momentos em que os candidatos realmente apresentem suas propostas políticas. Comícios, atos e reuniões também poderiam ser realizados em espaços públicos oferecidos pelo Estado, permitindo, assim, que as eleições sejam espaços legítimos para a disputa de ideias na sociedade.
Sabemos que a absorção da disputa eleitoral pelo Estado apresentaria alguns desafios importantes. O primeiro é a necessidade de criar controles estritos para que as práticas mercantis não sobrevivam à veda colocada pela implantação do serviço público – ou seja, mesmo tornando-as ilegais, é provável que persistam na informalidade. Uma fiscalização ativa, portanto, seria necessária. A proibição radical de campanhas “privadas” não seria simples; implicaria, como dissemos, uma mudança na cultura política.
A existência da internet também apresenta desafios complexos para a regulamentação das campanhas, aqui e no resto do mundo. Embora a rede mundial seja aparentemente um meio democrático, reproduz desigualdades geradas pelo poder do dinheiro e das empresas, além de impor dificuldades importantes para tentativas de regular seu conteúdo. Como inibir a exibição de vídeos de propaganda eleitoral pela web? Como coibir a utilização de perfis falsos pagos em redes sociais para disseminar calúnias sobre adversários? Precisamos pensar coletivamente em soluções para essas questões; encontrar formas de, em vez de compactuar com a lógica do efêmero, da velocidade, das informações apócrifas, das opiniões irrefletidas e da propaganda – o pior lado da cultura digital –, resgatar a dimensão da diversidade e aproveitar as possibilidades de acesso irrestrito e amplo que essa cultura oferece.
Seria necessário ainda regular o uso de dinheiro de particulares, em especial o dos próprios candidatos (parentes, laranjas etc.), para evitar qualquer tipo de “plutocratização” do sistema, ou seja, um sistema público dominado pelas elites que têm dinheiro. Como ficou claro nas últimas eleições, a existência de um teto para doações individuais como porcentagem da renda privilegia candidatos ricos. Dos 37 candidatos a prefeito de grandes cidades brasileiras eleitos no primeiro turno, por exemplo, 23 eram milionários. Determinar o financiamento exclusivamente público das campanhas eleitorais e, ao mesmo tempo, estabelecer tetos nominais baixos para doações individuais a partidos podem ser soluções.
É importante também impedir que, com essa ampliação do papel do Estado nas eleições, a máquina pública fique refém dos interesses dos indivíduos ou partidos que ocupem o governo naquele momento, ou seja, que use a máquina estatal para obter vantagens durante o período de campanhas ou nas eleições em si, em vez de cumprir o papel de juiz e organizador imparcial do pleito. A participação de fiscais das partes e cidadãos independentes poderia amenizar esse risco. Fórmulas mais complexas também poderiam ser elaboradas – a chave é a participação cidadã.
Para que a fórmula acima funcione, é crucial criar mecanismos democráticos e transparentes para a disputa intrapartidária na escolha de candidatos (ou eventual ordenamento de listas de candidatos). Ora, o financiamento público, além eliminar a necessidade de doações privadas, também amplia a possibilidade de estabelecer tais mecanismos, na forma de “condicionalidades democráticas”. Alguns exemplos de condições que os partidos teriam de cumprir para receber fundos estatais seriam a obrigatoriedade de prévias internas, e/ou o estabelecimento de cotas de gênero nas listas de candidatos dos partidos. O sistema Primárias Abertas Simultâneas Obrigatórias (PASO), da Argentina, talvez possa servir como um modelo interessante.
Há, no Brasil, larga cultura regulatória em matéria eleitoral, um aparelho público forte. Sua extensão para o jogo eleitoral, incluindo prefeituras, estados e a União, não constitui um grande desafio institucional. Também não é uma questão de recursos, já fartamente disponíveis nas regras atuais e nas que estão propostas. Esse movimento é viável.
O atual cenário vivido por nosso sistema político, em que alguns têm muito mais voz do que outros em virtude de seu poder econômico, desestimula a participação democrática, vista por muitos como inútil, e a própria fé em valores democráticos (já que a democracia “não funciona”). Acreditamos, portanto, que o exercício de novas práticas que facilitem e tornem mais equilibrado o acesso aos mecanismos da democracia, para que todas as vozes de nossa sociedade possam ser ouvidas, não só possa tornar nosso sistema mais apto a passar no teste democrático, como também pode colaborar para reverter o desalento e a apatia atual diante da política.
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