A “privatização da democracia”, tal como caracterizada nas publicações que o Vigência! está lançando sobre o tema, é um fenômeno próprio do que pode ser denominado do estágio “pós-moderno” da democracia. Ela só é possível no contexto da hegemonia político-cultural da ideia de democracia gerada pelo mundo moderno. Essa privatização representa a principal ameaça no contexto das suas regras do jogo. Uma democracia privatizada é uma democracia capturada pelas empresas, que buscam o lucro e defendem seus interesses particulares – opostos ao interesse geral –, mas que o fazem dentro das regras do jogo (diferentemente do momento de exceção no Brasil, os check and balance funcionam).
A democracia padece ou usufrui de uma condição pós-moderna: ninguém prefere outro regime a ela. E, se prefere – o socialismo, um feudalismo, uma tirania em favor próprio, ou até alguma utopia, entre outras ideias e sonhos –, tem de estar disposto a pagar o custo que essa mudança de regime implica, além de obter poder suficiente para garantir sua sustentabilidade ao longo do tempo, sabendo que, no fim, como temos testemunhado ao longo dos últimos anos, deverá pagar pelas consequências.
É esse arranjo democrático pós-moderno que cancela – e condena – as opções revolucionárias à esquerda e à direita, mas que não comporta também a trapaça ou o crime, venham de onde vierem. A trapaça, o crime ou o uso arbitrário da norma democrática, se não forem contidos, esvaziam a própria natureza do regime e o colocam do lado de fora da ordem. O processo contra a presidenta Dilma está nessa não-ordem das coisas, ou seja, fora da democracia.
A consistência teórica da “privatização da democracia” acaba sendo distorcida pela situação atual, tendo o elemento patrimonial da equação – a privatização – ganhado maior destaque. O Brasil pós-impeachment é um regime patrimonializado, no qual a diversidade democrática, a sua institucionalidade, é suspensa na sua funcionalidade. Mesmo que presentes, seus órgãos não funcionam, a não ser como mecanismos de dominação e palcos de disputa intra-elite. Não há dissenso para fora do regime, só no seu interior.
Nesse contexto, a primeira luta do campo popular é pela democracia, mas a segunda é contra a privatização institucional que ela sofre porque é ela a que rouba a soberania popular e a riqueza das suas nações. Mas a luta que não perde validade é pela transformação social e o fim da exploração.
Gonzalo Berrón é integrante do Vigência!.
Reflexão motivada pelo diálogo do Vigência! com Gustavo Codas, Maio de 2016.
Foto: Wikicommons.