Duas conjunturas no Brasil nos convocam a falar sobre democracia: o golpe branco à presidenta Dilma Rousseff e ao projeto do Partido dos Trabalhadores e do campo popular como um todo; e a iminência, nesse contexto, de um processo de eleições locais. A essa conjuntura nós acrescentamos um fenômeno contemporâneo que contribui para a perversão da democracia e a mergulha nessa crise atual: a sua privatização. Antes de retomar os primeiros dois elementos da conjuntura, nos ateremos brevemente nesse último fenômeno.
Consideramos a democracia o mais comum dos bens comuns das sociedades modernas. É por meio do seu exercício que as pessoas constroem a vontade coletiva e a visão do que é o bem comum, ou o interesse geral da comunidade em que habitam. Mas a forma pela qual a democracia é exercida hoje facilita a sua captura por interesses particulares, especialmente – mas não apenas – pelos interesses econômicos. Essa captura, que se realiza de diversas formas, acaba transformando-a em um mecanismo “privado”, cuja consequência é o fenômeno da “privatização da democracia”.
A democracia, assim, em vez de promover o bem comum, passa a gerar leis, normas, e todo tipo de decisões públicas que beneficiem os interesses privados. No contexto das nossas economias de mercado, os atores econômicos possuem capacidade extra de privatizar os mecanismos da democracia (a começar pelas eleições, mas passando também pela influência legislativa, jurídica e executiva). Essa capacidade extra é derivada do fato de que as campanhas políticas são, em grande parte, deixadas nas mãos da concorrência quase selvagem dos diversos candidatos às vagas públicas. No “mercado” da política, os mais competitivos são aqueles que podem mobilizar mais recursos econômicos. Não é que o projeto e/ou as habilidades retóricas ou carisma não importem, mas sim que essas qualidades podem ser neutralizadas – ou esmagadas – por máquinas publicitárias ou exércitos de militantes mercenários invadindo os espaços de disputa corpo-a-corpo ou as redes sociais, hoje tão utilizadas na contenda política pública e eleitoral.
O que é certo é que o resultado da “democracia privatizada” é desolador para a sociedade, em particular, é claro, para os setores que menos possuem, pois esses têm menos chances de colocar seus candidatos “pobres” nas arenas custosas das campanhas eleitorais. Quem é eleito? São eleitos os candidatos ricos – que podem ganhar porque podem custear uma campanha por conta própria -; ou os candidatos apoiados pelos ricos; ou os candidatos que fazem acordos com empresas ou pessoas que podem bancar a campanha. Uma situação adicional que não altera em nada o raciocínio, mas, pelo contrário, o reafirma, é a de candidatos que “investem” e/ou se endividam para concorrer nas eleições. De um jeito ou de outro, e com algumas diferenças do conceito apresentado por Max Weber no começo do século XX1, a democracia se torna uma “plutocracia”, ou seja, um governo dos ricos, ou dos seus representantes.
Em todos esses casos, o que o sistema democrático gera é de uma perversidade estarrecedora: gestores públicos que devem favores ou dinheiro e cuja gestão pública estará orientada ou, no mínimo, condicionada por essa realidade. Gestores públicos que vão atuar para pagar a campanha passada e ganhar favores para a futura. Gestores públicos ricos que, sem estar endividados, provavelmente governarão com a visão dos poderosos e dos que têm, e não dos que necessitam. Corrupção e favores de todo tipo são o ingrediente final desse coquetel explosivo que configura a privatização da democracia contemporânea.
O Brasil é um exemplo perfeito do que estamos falando. Não precisamos citar casos específicos, mas sim definir o futuro que queremos para a nossa democracia, e aqui retomamos a abertura dessa coluna. O coquetel “golpe” + “privatização” tem jogado o interesse e a confiança das pessoas no sistema democrático para o último canto de suas almas. O problema é que o sistema democrático atual promove a eleição desses políticos que, “privatizados”, se movimentam pelo interesse particular, não geral, e o governo do PT, ao ser conivente com essas práticas, perdeu a moral para explicar a quase impossível harmonia entre o fazer para todos e o fazer para se manter no Estado, graças ao Estado.
A proibição das doações empresariais de campanha representa alguma melhoria, mas não transforma a situação de forma radical. O rico ainda tem mais chances de concorrer, os doadores individuais ricos têm mais chances de influenciar ou propor os seus próprios candidatos, e nada impede que um candidato se endivide para ser competitivo na eleição…
No nosso entendimento, e aqui chegamos por fim às eleições locais, temos agora a primeira oportunidade depois do golpe de lançar o debate sobre a democracia que queremos sem nenhum tipo de compromisso “de governo”: pensar a democracia que queremos e como articular essas vontades e ideias que se constroem como filhas da nossa realidade e das nossas lutas, e que farão parte dos ideais e propostas do campo popular que começa a ser construído – e reconstruído – a partir do colapso provocado pelo golpe. Valorizar a democracia hoje, voltar a dotá-la de sentido emancipador, só será possível se conseguimos “desprivatizá-la”.
Se nas nossas sociedades modernas a democracia é o mais comum dos bens comuns, não pode ser largada às mãos do mercado. Os efeitos nós já vimos quais são. Não adianta ter uma Justiça Eleitoral que funcione como “agência reguladora” do mercado político, encarregada da tramitação dos comícios e de impor algumas regras à concorrência entre os candidatos, que não conseguem evitar – e talvez até promovam – as perversões de que falamos acima.
Nós achamos que a noção de bem comum demanda da sociedade uma abordagem diferente, que considere os mecanismos “competitivos” da eleição como sendo inteiramente públicos, e não sujeitos às possibilidades erárias dos competidores. Um sistema de eleições entendido como “serviço público” – ou seja, o serviço de escolha das pessoas que vão gerir a coisa pública – tem que ser “universal”, organizado e financiado pelo Estado. As eleições não deixam de ser competitivas, elas o são em termos de projetos, propostas, identidade, simpatia ou habilidades retóricas, mas essencialmente igualitárias, pois todos/as terão possibilidade de concorrer. Nos tempos das comunicações eletrônicas, isso não parece tão complexo.
Ao mesmo tempo, conceber a democracia como um comum implica também um movimento “desde abajo”: sem que a sociedade se aproprie do que é de todos/as, sem que radicalizemos e reinventemos a participação, não haverá forma de os cidadãos se apropriarem da gestão da coisa pública.
Começar a construir formas de “desprivatização” da democracia no âmbito das cidades, portanto, é a primeira tarefa que se apresenta aos candidatos que almejam representar a renovação do campo popular.
Gonzalo Berrón é militante do Vigência!.